Por Josep Iborra Plans (CPT Rondônia)
Prestes a completar 9 anos, a luta por Justiça parece estar longe de solução para as famílias de dois jovens sem terra (sendo um assassinado e outro desaparecido), em uma grave violência sofrida na Fazenda Tucumã, em Cujubim (RO), em janeiro de 2016. Após diversos adiamentos, o julgamento, que estava marcado para este mês de dezembro, foi novamente suspenso, sem previsão de uma nova data.
Ruan Lucas Hildebrandt (na época com 18 anos) e Alysson Henrique Lopes (com 21), além de outros três trabalhadores, faziam parte do acampamento Terra Nossa, que havia sofrido um despejo sem incidentes dois dias antes, e voltaram à sede da fazenda para buscar objetos pessoais que tinham ficado para trás. Ao chegarem ao local, não houve diálogo com os seguranças da fazenda e o grupo foi atacado e perseguido por mais de 14 horas.
Três integrantes do grupo conseguiram escapar dos ataques, mas os dois jovens acabaram sendo alcançados. O corpo de Alysson foi encontrado nas proximidades no dia seguinte carbonizado dentro do próprio carro, também queimado, sendo apenas identificado pelo DNA um ano mais tarde. Já o corpo de Ruan nunca foi encontrado, apesar dos empenhos incansáveis da família pelas buscas do desparecido.
Dois fazendeiros, vários pistoleiros e policiais foram presos e inculpados, por dois homicídios e três tentativas, chegando a ser julgados e a maioria declarados culpados pelo tribunal do júri em Ariquemes. Na fazenda, um arsenal de armas foi achado dentro duma camionete. Porém o julgamento posteriormente foi anulado, passando por sucessivos adiamentos.
Os atos violentos pretendiam ser uma demonstração de violência, que devia dissuadir novas ocupações do Acampamento Terra Nossa, naquela fazenda de terra pública grilada. Porém, o terror apenas ajudou a revoltar e aproximar de movimentos mais radicais aquele grupo que demandava para reforma agrária a Fazenda Tucumã. Uma série de atentados, inclusive com vítimas fatais, acabou acontecendo ao longo destes últimos anos. Isto sem falar de casos anteriores, como o do acampado Cloves de Souza Palma, assassinado em Cujubim em 01/07/2015.
A acusação e prisão preventiva de fazendeiros, policiais e pistoleiros foi seguida de outra caçada implacável: a perseguição das testemunhas que podiam provar a culpabilidade deles, começando pelos três sobreviventes. Um deles, conhecido por Neguinho, foi baleado em Cujubim em 14 de abril de 2016, porém sobreviveu, ficando sem os movimentos de um braço. Ele já tinha sido ferido de raspão durante a perseguição na Fazenda Tucumã e chegou a prestar depoimento em Porto Velho, na audiência duma Missão do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que conseguiu a sua inserção no Programa de Proteção às Testemunhas.
Em Cujubim, um moto-taxista que prestava serviços na fazenda foi assassinado, segundo a população, porque “estava falando demais”. Logo depois, dois jornalistas locais sofreram também atentados em abril de 2016. Ivan Pereira da Costa, dono do site “Alerta Rondônia”, que cobriu a história de perto e ajudou os pais na busca do desaparecido Ruan, resultou ferido e teve que fugir da cidade e do estado com a família. Segundo conhecidos, veio a falecer a consequência das feridas, anos mais tarde.
A CPT Rondônia, em nota de 15 de abril de 2016, denunciava esta nova onda de violência, que estava tentando encobrir os crimes da Fazenda Tucumã. Entre 2015 e março de 2016 a Pastoral já tinha registrado 26 mortes no campo de Rondônia. Todas elas sem esclarecimento nem punição a autores nem mandantes.
A pressão pelas mortes da Fazenda Tucumã levou à criação duma Força Tarefa da Polícia Civil, que ajudou na investigação do caso. Porém, a perseguição das testemunhas acelerou em 2017:
» Roberto Santos Araújo, de 35 anos, um dos coordenadores do Acampamento, foi assassinado no dia 01 de fevereiro de 2017. O corpo foi encontrado no Km 52 da RO-257, na zona rural de Ariquemes, outra área onde os acampados se deslocaram após serem expulsos da Fazenda Tucumã.
» Elivelton Castelo do Nascimento, o Ton, testemunha que tinha prestado depoimento sobre as mortes de Ruan e Alysson e acompanhado os pais de Ruan nas buscas, foi assassinado em Ariquemes no dia 15 de fevereiro de 2017.
» Renato de Souza Benevides, conhecido como “Baixinho”, era outro dos três sobreviventes que conseguiu escapar da caçada humana de cinco acampados da Fazenda Tucumã. Foi assassinado em Machadinho d’Oeste o dia 04 de março de 2017.
» Já no dia 07 de julho de 2017, foi assassinado em Porto Velho, onde estava para uma reunião do INCRA, Ademir de Souza Pereira, que era outra das principais lideranças do Acampamento Terra Nossa. A esposa conhecida como Lola, que também liderava o acampamento, e três filhos deles foram ameaçados durante o velório em Ariquemes com uma nota entregue por um mototaxista.
» Poucos dias depois, em 13 de julho de 2017, o acampado Jeferson Nipomuceno, o “Jefinho”, que também tinha participado das buscas de Ruan, foi assassinado em Machadinho d’Oeste.
Uma pedagogia do terror
Sem que possa ser chamado de “massacre”, considerado como tal pela CPT quando há pelo menos três mortes na mesma ocasião, podemos considerar que nos crimes da Fazenda Tucumã houve também uma verdadeira “pedagogia do terror”. Primeiro, para tentar impedir novas ocupações e segundo, para tentar impedir a condenação dos autores e mandantes. Ou uma função do “Massacre como recado”: “… o massacre foi organizado para que um recado fosse dado: “Não incomodem. Não ocupem. Não causem prejuízos ao latifúndio”.
Em Rondônia, isto aconteceu com o Massacre de Corumbiara (1995), citado várias vezes depois como ameaça para os grupos sem-terra. O recado do corpo de Alysson carbonizado, que serviu para amedrontar os demais, também foi direcionado para os pais de Ruan, de que seria inútil buscar o desaparecido. Só não contavam que lá havia uma mãe com a coragem e a teimosia digna das mães da praza de mayo, que nunca desistiram de procurar pelos seus filhos ou netos desaparecidos na ditadura argentina.
No campo de Rondônia, a pedagogia do terror apenas resultou em maior escalada de violência e radicalização do latifúndio e dos conflitos.
Este caso foi exceção nos casos de violência no campo de Rondônia, no sentido que chegou a identificar, prender e processar os supostos autores e mandantes, inclusive fazendeiros, policiais e ex policiais. Mesmo assim, na hora de ir para o julgamento, como em muitos outros casos, houve “manobras da defesa com má-fé, abuso de instrumentos jurídicos para retardar, como para suscitar nulidades processuais que levem à absolvição dos mandantes e executores,” conforme descrito no relatório Massacres no Campo, publicado recentemente pela CPT (p. 274).
O julgamento de 2017 pelos homicídios de Ruan e Alysson e os três intentos de homicídio, já foi cancelado na Comarca de Ariquemes, Rondônia, por desistência e troca de advogados, no dia que estava marcado de 15 a 18 de agosto de 2017. Sendo realizado finalmente em outubro, o julgamento durou cinco dias e foi concluído com a condenação a 30 anos de Rivaldo de Souza (executor); 30 anos de Moisés Ferreira de Souza (executor); 28 anos e perda de farda ao cabo da Polícia Militar Jonas Augusto dos Santos (executor). Quanto aos mandantes, o pecuarista Sérgio Sussuma Suganuma foi condenado a 08 anos e 04 meses de prisão por intermediar a contratação dos executores.
Já o grileiro da Fazenda Tucumã, Paulo Iwakami, conhecido como japonês, foi absolvido. Surpreendeu a absolvição de Paulo que, em seu depoimento em plenário, reconheceu ter contratado três equipes de segurança privada para a fazenda, formada por policiais militares e pistoleiros.
Contudo esta sentença foi anulada, a pedido do próprio Ministério Público e da Defensa. O motivo: O júri condenou os réus apenas pela morte de Alysson, considerando que o desaparecido Ruan ainda poderia estar vivo. Mas o juiz já o tinha declarado oficialmente como vítima fatal, e o júri tinha que julgar também a culpabilidade dos acusados pela morte dele. Mesmo assim, ver fazendeiros, policiais e pistoleiros presos e condenados ajudou para que em 2018 despencaram o número de mortes de camponeses em conflitos no campo no Estado de Rondônia.
Porém, anulada a sentença, já se passaram sete anos, sem que o novo julgamento tenha acontecido. Todos os acusados esperam em liberdade. Quem mais sofre são as testemunhas, que ainda continuam acolhidos no programa de proteção, com a liberdade restringida pelas ameaças, que continuam. Nenhuma das outras 09 mortes de acampados e testemunhas dos fatos da Fazenda Tucumã têm sido apuradas.
Várias vezes adiado o julgamento em Ariquemes, permanece a pedagogia do terror e da violência como modus operandi predominante para os conflitos do campo de Rondônia. Violência é respondida com violência. Sete casos de assassinatos impunes em conflitos no campo foram federalizados a pedido do MPF, após comprovar que não tinham chances de ser esclarecidos a nível estadual. Novos massacres já aconteceram no estado, destacando as mortes no Acampamento Thiago dos Santos, no Distrito de Nova Mutum, em Porto Velho, das quais a maioria de mortes tem autoria de policiais, em suposta retaliação pelas mortes de dois companheiros deles.
Enquanto o desmatamento e a violência no campo avançam na região da Amacro, com a fronteira agrícola para o sul de Amazonas e este do Acre, num processo de “rondonização”, de grilagem de terras acompanhado pela violência e mortes no campo, em Rondônia é a paisagem de Mato Grosso de domínio do agronegócio, que avança no campo e nos poderes do estado, suspeitos de apoiar e favorecer sempre aos mais poderosos grileiros de terras públicas.
Os pequenos que demandavam terras e reforma agrária, foram lançados ao garimpo ilegal e a invadir reservas ambientais e terras indígenas. Dezenas que insistiram na reforma agrária, foram presos e processados. Muitos também foram mortos. Porém mais de cinquenta grupos de pequenos agricultores continuam enfrentando em Rondônia conflitos no campo e disputas por terras. A maioria terras públicas e muitos, conflitos endêmicos, que se alastram por décadas.
Mudanças no executivo começam a dar sinais positivos. A retomada do julgamento da Fazenda Tucumã é uma nova oportunidade para não deixar que a violência e as vias de fatos consumados sempre falem mais alto. Por isso não podemos deixar de exigir do judiciário e do sistema de justiça o cumprimento da lei e do direito, atendendo também o lado das famílias mais desfavorecidas do campo. Começando pelo respeito ao direito à vida, numa perspectiva mais imparcial e equânime para todos os envolvidos nos conflitos do campo no Estado de Rondônia.
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Edição: Carlos Henrique Silva (Comunicação CPT Nacional)
PM apreendeu “arsenal” em caminhonete na zona rural de Cujubim – Foto: PM Rondônia / Divulgação