Nasce uma associação para ajudar vítimas de empresas cúmplices da ditadura

Juristas criam associação para ajudar vítimas de empresas investigadas por serem cúmplices do golpe de 1964

Por Marcelo Oliveira | Edição: Thiago Domenici, Agência Pública

Em evento na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, marcado por diversos simbolismos, juristas, defensores de direitos humanos e pesquisadores lançaram a Associação de Ativistas por Reparação, uma entidade por meio da qual buscarão ajudar a organizar as vítimas de empresas investigadas por cumplicidade com o golpe militar de 1964 e a ditadura que se estabeleceu em seguida e representá-las juridicamente nos inquéritos abertos pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e em eventuais ações ou acordos resultantes dessa atuação.

A USP foi escolhida como sede do lançamento por dois motivos: para abordar a falta de enfoque na Justiça de Transição em cursos de graduação de Direito no Brasil, onde é mais comum em pós-graduações, e para aumentar o envolvimento da USP nesse tema, destacando a importância de juristas na defesa desse conhecimento na Justiça.

“A USP colaborou muito para o golpe e para o AI-5 e não levou adiante sua memória quanto a isso, então é um ato de insurgência importante começarmos essa associação aqui”, afirmou o professor de direito da USP Jorge Souto Maior, doutor em Direito do Trabalho, e anfitrião do evento.

Para Sebastião Neto, coordenador do IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), entidade que busca o resgate da memória política dos trabalhadores e luta por memória, verdade, justiça e reparação, organizadora do evento, “a associação fará representação jurídica, mas mais que isso, vai formar quadros, pois as pessoas do meio jurídico tem pouco conhecimento sobre Justiça de Transição. A gente não sabe quem vai fazer as audiências na Amazônia, por exemplo, e Justiça de Transição tem questões muito próprias, não é simplesmente indenizar e acabou”, diz.

A Amazônia não foi citada aleatoriamente. Entre as empresas investigadas, Petrobrás, Paranapanema e Josapar tinham negócios na região, que violavam direitos de indígenas, ribeirinhos e trabalhadores, e as investigações têm desdobramentos no Pará e Amazonas, notadamente.

No último dia 5 de dezembro, o Ministério Público do Trabalho (MPT), inclusive, anunciou que propôs uma ação civil pública contra a Volkswagen pelo emprego de trabalho escravo em uma fazenda mantida pela montadora em Santana do Araguaia, no Pará, nos anos 1970 e 1980. A companhia estava participando de discussões com o MPT sobre o caso, mas retirou-se das negociações e passou a alegar que as violações ocorridas no Pará estão cobertas pelo TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) de 2020.

Volks, o começo de tudo

O IIEP organizou e liderou o Grupo de Trabalho Sindical da Comissão Nacional da Verdade. Foi no GT Sindical, a partir de 2013, que se começou a pensar a busca por responsabilização de empresas por sua cumplicidade com a ditadura. O trabalho culminou no TAC assinado pela Volkswagen, em 2020, com o MPF, MPT e Ministério Público de São Paulo.

O acordo, no valor total de R$ 36 milhões, foi de onde saíram os recursos com os quais foram financiadas pesquisas acadêmicas, coordenadas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), sobre mais 13 empresas brasileiras que também apoiaram o golpe e são acusadas de ligação com violações de direitos humanos sofridas por seus trabalhadores e pessoas impactadas por seus empreendimentos e negócios.

Até o momento, as apurações acadêmicas subsidiam investigações do MPF e do MPT sobre a Petrobras, Folha, Cobrasma, Docas, Paranapanema, Aracruz, Josapar, Itaipu, CSN, Fiat, Belgo-Mineira, Mannesmann e Embraer. Os principais achados dessas pesquisas foram contados pela Agência Pública na série de reportagens “Empresas Cúmplices da Ditadura”.

Uma décima quarta investigação foi iniciada no final de 2023 pelo MPF em Minas Gerais sobre a Usiminas, palco do massacre de Ipatinga, no final de 1963, no qual a PM de Minas Gerais, no governo Magalhães Pinto, banqueiro e declarado apoiador do golpe, disparou rajadas de metralhadora contra trabalhadores que protestavam por melhores condições de trabalho e alojamento.

O número oficial é de 8 mortos, mas investigações da Comissão Nacional da Verdade e de pesquisadores que estudaram o massacre apontam que o número pode ser de 30 a 80 pessoas. Não há, entretanto, recursos disponíveis, por enquanto, para financiar uma nova pesquisa acadêmica, nos moldes das realizadas até agora.

Não é só indenização

O jurista Belisário dos Santos Júnior, ex-secretário de Justiça de São Paulo, e ex-integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, citou peculiaridades dos processos de reparação na Justiça de Transição, que devem seguir o previsto na resolução 60 da ONU.

“Não é para ficar em indenização somente. Tem várias outras coisas, como a construção de um sistema de educação diferenciado, pois quando se faz memória e verdade, temos que ter um olho na situação atual, pois ela reproduz e muito o que aconteceu na ditadura militar”, e fez uma analogia: “é como a história da câmara corporal. Tudo bem, o governador topou (que os PMs usem) mas não é só isso. É mudar a mentalidade, é mudar a educação”, explicou.

A advogada Rosa Cardoso, que também foi coordenadora da Comissão Nacional da Verdade, afirmou que a meta dela e do IIEP é colocar a associação em funcionamento ainda no primeiro bimestre de 2025 e confirmou seu compromisso com o grupo e que já vai começar a trabalhar em seu estatuto, que deve ser o menos formal possível, para estimular a participação dos interessados. Ela explicou como devem ser os próximos passos dos inquéritos das empresas e que a participação das vítimas e seus descendentes é fundamental.

“Temos todas aquelas provas contra eles e as empresas serão chamadas para fazer um acordo conosco. Nesse acordo, nós já queremos pedir aquelas reparações que cada grupo de pesquisa estimou, acordou e conversou com os vitimados daquela categoria. São indenizações materiais, mas há também um conjunto de outras reparações que devem ser diferenciadas, conforme sejam trabalhadores, quilombolas, populações indígenas, por exemplo. Mas nós sabemos se a população indígena vai se interessar por ser reparada através de uma bolsa de estudos ou de um museu de determinada forma? Isso tem que ser conversado com os vitimados”, explicou.

“O desafio é termos um CNPJ que seja um instrumento de luta, mas a diferença é que tendo um instrumento jurídico nós podemos, entre outras coisas, nesses acordos que estão sendo feitos com as empresas pedir um valor gigante para ser aplicado em interesses coletivos”, afirmou Ney Strozake, advogado do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sem organização, acredita o advogado, o dinheiro pode ir para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos – gerido por um conselho federal – e ter outras destinações não relacionadas aos casos concretos.

Ouvida após o evento, Rosa Cardoso confirma que a associação terá CNPJ para poder atuar juridicamente nas ações e poder, inclusive, ser autora ou co-autora de petições.

Neto afirma que a associação não muda em nada outras formas de organização das vítimas, que continuarão mantendo o Fórum por Verdade, Justiça e Reparação, que reúne não apenas vitimados, mas movimentos sociais, sindicatos, centros de memória e entidades de defesa dos direitos humanos, em campanha permanente pela responsabilização “dos patrões da ditadura”.

Homenagem

O evento na USP foi também uma homenagem à Jair Krischke, líder do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), e um dos brasileiros com mais conhecimentos sobre a Operação Condor, associação político-militar das ditaduras do cone-sul nos anos 1970 e 1980, que se auxiliaram para perseguir, prender, matar e desaparecer com adversários.

O evento começou com a exibição do documentário “Imprescindível”, de Milton Cougo, que busca apresentar o trabalho de Krischke e do MJDH que estabeleceu uma rota segura para exilar mais de 2000 pessoas perseguidas pelas ditaduras da região. “No Brasil dizem que defendo bandidos, no Uruguai recebo homenagens”, lamenta Krischke em trecho do documentário.

Ex-presidente da Comissão da Verdade do Paraná, Ivete Maria Caribé da Rocha, ressaltou o papel de Krischke. “Jair arriscou sua vida em vários momentos, ao organizar a ida de várias pessoas que precisavam fugir da morte e da perseguição no cone-sul”, afirmou.

Krischke foi convidado a ler o manifesto dos trabalhadores em que eles pedem a responsabilização de empresas por violações de direitos humanos.

“A violência diária das polícias se manteve nas periferias desde a Ditadura. E permanece um ranço antidemocrático em nossa sociedade, especialmente entre os militares, como ficou demonstrado no 08 de janeiro de 2023. Pela falta de apuração e condenação dos crimes cometidos por empresas, predomina na sociedade uma cultura que vigora até hoje, quando os casos mais aberrantes são normalizados e corriqueiros. Se houve um avanço democrático na sociedade, após a Constituinte, ele não entrou nas fábricas, nos campos, nos locais de trabalho em geral”, afirma o manifesto.

Memória e verdade

O jornalista e advogado Dojival Vieira, fundador do PT em Cubatão, milita há 40 anos em busca por Justiça para as vítimas do incêndio da Vila Socó, uma comunidade de palafitas, localizada num mangue e que foi praticamente destruída por um incêndio em 24 de fevereiro de 1984. O incêndio foi causado por vazamento de gasolina que teria começado nas tubulações da Petrobrás, que ligavam a refinaria da cidade ao Porto de Santos. Apesar de o mau cheiro ter sido sentido pela manhã e comunicado às autoridades, nem a Petrobrás, nem a prefeitura local fizeram algo para evacuar os moradores.

Segundo dados oficiais, 93 pessoas morreram no incêndio, mas levantamentos independentes apontam que o total de vítimas pode ser de 508, uma vez que famílias inteiras desapareceram após a tragédia. O número inclui também as crianças que deixaram de frequentar a escola.

“Essa associação é mais um instrumento para que a memória e a verdade não sejam apagadas, como há anos aconteceu na Vila Socó”, afirmou.

Imagem: Arquivo Nacional

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