Coragem! “Não tenham medo! Eu vos anuncio uma notícia libertadora, que será grande alegria para os povos: hoje, na cidade de Davi – Belém -, nasceu para vocês um Salvador, que é o Cristo, nosso Senhor” (Lc 2,10-11), bradou um/a mensageiro/a do divino aos pastores. “Nasceu numa manjedoura” (Lc 2,12), em um cocho de ração para animais. “Olhe a glória de Deus brilhando…”, canta Zé Vicente.
Considerados impuros, discriminados e os mais excluídos da sociedade escravocrata do Império Romano, “os pastores foram, às pressas, e encontraram Maria e José, e o recém-nascido deitado na manjedoura” (Lc 2,16). “Todos os que ouviam os pastores anunciando o nascimento do divino no humano, ficaram maravilhados” (Lc 2,18).
Em tempos de políticos opressores como o rei Herodes, na periferia do escravocrata Império Romano, na Palestina, o evangelho de Mateus (Mt 2,1-12) diz que, magos, seguindo a “estrela de Belém”, o divino irradiando no humano em todas as culturas, “encontraram Jesus com Maria, sua mãe, em uma casa” (Mt 2,11) – não no templo nem na sinagoga e nem em palácios -, o reverenciaram e “voltaram para seus territórios por outro caminho” (Mt 2,12), driblando o repressor rei Herodes.
Atualmente, em uma sociedade capitalista superexploradora, com idolatria do mercado, com um monte de dualismos perpassando as experiências humanas e religiosas, o mais comum é vermos pessoas celebrarem o Natal olhando só para o nascimento de Jesus Cristo, nosso Mestre, Salvador, Libertador, porque testemunha e ensina um jeito divino de convivermos, mas não perceberem Jesus (re)nascendo cotidianamente no nosso meio e em nós. Esse dualismo distorce o sentido mais profundo e libertador do Natal, porque nos induz a olhar só para dois mil anos atrás e reforça a mágica que diz “só Jesus tem poder!” e, assim, nós seríamos zero à esquerda, impotentes, para enfrentar e superar as injustiças.
Faz bem nutrirmos profunda gratidão, admiração, reverência e respeito por Jesus Cristo, Filho de Deus encarnado no humano, nascido há dois mil anos, mas precisamos ver outros Jesus (re)nascendo atualmente em nós, no nosso meio, perto e longe de nós, pois o mesmo Espírito Santo que guiava e inspirava Jesus Cristo continua agindo em nós e espera que sejamos “outros Cristos”, como dizia dom Oscar Romero, antes de ser martirizado pela ditadura militar-civil-empresarial que se abatia sobre o povo em El Salvador.
O evangelho de Jesus Cristo diz várias vezes sobre a necessidade de compreendermos que Cristo está no irmão e na irmã, especialmente nos empobrecidos como nos mostra Mateus 25,31-46: Jesus está presente em quem está preso, passa fome, está nu, doente, é migrante, é estrangeiro, sedento, violentado, injustiçado. “Eu estava preso e você não me visitou, com fome e você não me alimentou, com sede e você não me deu água, nu e você não me vestiu, eu era estrangeiro e você não me acolheu” (Mt 25,35-36). O amor a Deus só é autêntico se amarmos o próximo, que inclui toda a humanidade e todos os seres vivos da biodiversidade, inclusive as pedras que também são vivas. Quem não vê Deus e Jesus no próximo e no distante não está no caminho libertador.
O sensato é superarmos o dualismo e vermos Jesus (re)nascendo, ontem e hoje, lá e cá. O Natal é como uma moeda que tem duas faces: em uma, Jesus Cristo que nasceu pobre no meio dos pobres há dois mil anos lá na Palestina, e na outra face da moeda, Jesus segue (re)nascendo atualmente, em nós, perto e longe de nós, a partir dos últimos da sociedade, dos/as mais violentados/as.
Jesus nasce de Maria, mulher do povo e revolucionária que “derruba do trono os poderosos e eleva os humildes” (Lc 1,52), como Jael, mulher estrangeira do povo quenita, do cântico da juíza Débora (Jz 4,17-21; 5,24-27) e Judite (Jt 13,18; cf. Gn 14,19-20), mulheres reconhecidas como BENDITAS por terem golpeado os generais Sísara e Holofernes, opressores do povo. Jesus diariamente segue renascendo em mães solos que, em uma sociedade patriarcal e machista, se tornam heroínas que criam, cuidam e educam seus filhos que nascem nas periferias, sem-terra, sem-teto.
Jesus contou com o apoio de José, seu pai, “homem justo” (Mt 1,19) como Noé, um dos primeiros Chico Mendes que se dedicou a salvar “um casal de cada espécie” no dilúvio, como tantos pais hoje que, operários ou camponeses, são pais justos com consciência de classe trabalhadora e não apenas vendem sua força de trabalho, mas com justiça e ética constroem relações sociais libertadoras.
Jesus nasceu sem-terra na periferia de Belém no porão/estacionamento de uma pensão como milhões de pessoas que nascem em países com a terra em cativeiro, aprisionada por latifundiários e empresários do agronegócio e, por isso, são obrigadas a migrarem e a se tornarem mão de obra barata.
Jesus nasceu sem-teto como milhões que, após amargarem a pesadíssima cruz do aluguel ou a humilhação que é sobreviver de favor sendo peso nas costas de parentes ou por terem sido jogados nas agruras das ruas e ficarem expostos às suas intempéries, ocupam terrenos ou prédios abandonados e lutam aguerridamente construindo mais casas do que o poder público. Só em Belo Horizonte, MG, os sem-teto construíram 50 mil casas em 150 ocupações em 18 anos. Muitos já me disseram: “Como servente de pedreiro ou como pedreiro, já ajudei a construir mais de 200 casas/apartamentos, mas só aqui na Ocupação estou construindo a casa da minha família, graças a Deus e à nossa luta coletiva”. “Trabalhei 27 anos como faxineira no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Quando adoeci me demitiram. Só aqui na Ocupação estou construindo minha casa e resgatando minha saúde, pois quatro filhos meus com suas famílias também estão construindo as casas deles aqui na Ocupação Esperança. Isso me faz dormir em paz. Só na luta coletiva conseguimos nos libertar da pesadíssima cruz do aluguel que adoece e mata muita gente aos poucos”, diz emocionada dona Nadir.
Jesus nasceu sendo acolhido por pastores considerados impuros e os mais discriminados e Jesus renasce a cada dia nas pessoas LGBTQIA+, no povo do candomblé, da Umbanda, do Espiritismo e em todas as outras pessoas discriminadas na nossa racista e hipócrita sociedade.
Jesus foi encontrado pelos magos do oriente, onde o sol sai e fertiliza as infinitas expressões de vida e de culturas. Atualmente, Jesus renasce nos Povos Originários (Indígenas), no Brasil, em mais de 300 Povos que, com mística e espiritualidade libertadora, são guardiões da floresta, do cerrado, da natureza e, com sabedoria ancestral, convivem em harmonia com o ambiente impedindo a “queda do céu”.
Jesus nasceu de Maria e de José, que com coragem questionaram o rigorismo farisaico e o dogmatismo judeu e renasce hoje e sempre nas pessoas, que, com muito amor, combatem os fundamentalismos, os moralismos e a extrema-direita fascista que usa e abusa o nome de Deus e versículos bíblicos para encobrir as políticas de morte que defendem com truculência.
Jesus nasceu no movimento popular religioso que vinha de longe, de profetas e profetisas, e hoje renasce nos/as militantes de Movimentos Sociais que irmanam os povos no campo e na cidade para lutarem coletivamente pelos seus direitos e pelo bem comum.
Despertemos do sono da mediocridade, da escuridão da omissão/cumplicidade e da indiferença que a sociedade capitalista impõe. Abramos os olhos para ver e sentir que “Ele está no meio de nós.” Jesus está no meio de nós, especialmente nos pequenos, em tantas pessoas e na Mãe terra, oprimidas e violadas em seu direito de viver com dignidade. Que a luz do Natal seja a luz a nos guiar na direção de Jesus que está clamando por vida, no meio de nós! Enfim, é Natal, ontem e hoje, lá e cá. Sejamos Natal, presença do divino no mundo a partir dos últimos!
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[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e Ocupações.
Imagem: Presépio com Jesus palestino na casa de Geralda Soares, pesquisadora indígena e ardorosa defensora dos direitos humanos e socioambientais. Foto: Gerada Soares, a Gêra.