“O militar brasileiro sempre esteve essencialmente voltado para combater brasileiros que abraçam reformas sociais”. Entrevista especial com Manuel Domingos Neto

Para o professor e pesquisador, autor do livro ‘O que fazer com o militar? Anotações para uma nova defesa nacional’ (2021), na história do Brasil nenhum presidente comandou efetivamente os militares

Por: IHU e Baleia Comunicação

Até a Guerra do Paraguai, os militares brasileiros eram bastante desorganizados enquanto corporação. Tudo, porém, começa a mudar após o conflito e vão conformando progressivamente a atuação das Forças Armadas até a atualidade, sem jamais passar por uma reforma mais do que necessária. É por isso que, hoje, os militares funcionam como “integrantes de corporações decisivas para a preservação da ordem social herdada da colonização. Como instrumentos para afirmação da soberania nacional, foram agentes secundários”, descreve Manuel Domingos Neto, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Quanto às consequências da tentativa de golpe e assassinato do presidente Lula, o pesquisador tem uma postura que não deposita a expectativa da punição apenas no poder judiciário, estendendo-a ao Executivo. “Os desdobramentos do fiasco estão em curso e dependem muito da orientação presidencial. O STF hoje é visto como protagonista, mas o Poder Executivo, mesmo tentando lavar as mãos, tem sua responsabilidade. O presidente da República responde pelo comando supremo das Forças Armadas. Não exercendo tal papel, torna-se responsável parcialmente pelo que ainda pode acontecer”, assevera.

“O presidente da República e as forças políticas que o apoiam devem convencer o povo brasileiro da necessidade de uma Defesa Nacional que garanta a soberania e a democracia. Mesmo setores conservadores podem apoiar essa bandeira. Não vale pôr a culpa no Congresso quando nem sequer a ideia é ventilada. Há um recuo generalizado nos partidos de esquerda. O Congresso sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições avançadas sem pressão popular”, provoca.

Manuel Domingos Neto graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, é Mestre em Sociedade e Economia na América Latina, pela Universidade de Paris III, e doutor em História pela mesma universidade. Foi pesquisador da Casa de Rui Barbosa, superintendente da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí, estado pelo qual também foi deputado federal. Professor emérito da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal Fluminense, foi também vice-presidente do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É autor, entre outros, de O que fazer com o militar? Anotações para uma nova defesa nacional (2021)

Confira a entrevista.

IHU – O que são os militares no Brasil e para que servem?

Manuel Domingos Neto – Persistem o que sempre foram desde a criação do Estado brasileiro: integrantes de corporações decisivas para a preservação da ordem social herdada da colonização. Como instrumentos para afirmação da soberania nacional, foram agentes secundários. A Independência foi escorada no poder hegemônico da Inglaterra, que prevaleceu até a ascensão dos Estados no fim da Segunda Guerra.

IHU – Em dezembro, foi desbaratado o golpe de estado com tentativa assassinato de autoridades, entre elas o presidente Lula, planejado por militares de alta patente. Quais desdobramentos devem ocorrer em relação ao caso?

Manuel Domingos Neto – Decorrerá algum tempo até que fique totalmente esclarecida a trama golpista. Não posso afirmar com tranquilidade que as articulações decisivas ocorreram em dezembro de 2022. No máximo, diria que, nessa época, já estava configurada a inviabilidade do golpe: o conjunto das corporações não se mostrou disposto a quebrar a institucionalidade. Seria um choque muito grande. Difícil imaginar os golpistas se mantendo no poder.

Os desdobramentos do fiasco estão em curso e dependem muito da orientação presidencial. Hoje, o STF é visto como protagonista, mas o Poder Executivo, mesmo tentando lavar as mãos, tem sua responsabilidade. O presidente da República responde pelo comando supremo das Forças Armadas. Não exercendo tal papel, torna-se responsável parcialmente pelo que ainda pode acontecer.

IHU – Em entrevista recente, o senhor menciona a “síndrome pós-Guerra do Paraguai”. Do que se trata? Com ela ajuda a explicar a postura dos militares?

Manuel Domingos Neto – É no retorno da Guerra do Paraguai que os militares se perceberam atores políticos decisivos. Antes, as corporações, particularmente o Exército, não detinham capacidade orgânica de controle sociopolítico. Havia a Guarda Nacional, muito capilar. Os quartéis do Exército eram unidades frágeis, dispersas, mal instruídas, dependentes de potentados locais. Depois da Guerra do Paraguai, os comandantes sentiram-se em condições de impor a autonomia das corporações.

IHU – Como construir politicamente uma nova defesa nacional? O que significa a noção de “nova defesa nacional”?

Manuel Domingos Neto – A concepção de uma nova Defesa Nacional deve exprimir um projeto de autonomia nacional alicerçado na união dos brasileiros. O primeiro passo neste sentido é acabar com o distúrbio de personalidade funcional que acomete as corporações: não sabem se devem se preparar para o confronto com o estrangeiro ou para garantir a segurança pública. Cabe alterar o artigo 142 da Constituição.

O grande alicerce de uma nova Defesa deve ser a coesão nacional. Isso implica sepultar de vez a ideia de “inimigo interno”, presente desde a Constituição de 1824 e exacerbada na Guerra Fria. A Defesa de que dispomos é lastreada no grande esquema militar ocidental comandado por Washington. O militar brasileiro sempre esteve essencialmente voltado para combater brasileiros que abraçam reformas sociais.

Outros aspectos fundamentais de uma nova Defesa Nacional seriam a integração sul-americana, o desenvolvimento de capacidade própria para a produção de armas e equipamentos e a reforma militar. Alguns se referem à reforma militar sem saber do que se trata. Imaginam mudança de comandantes, revisão do currículo das escolas… Confundem causas e consequências.

IHU – Com relação às atribuições dos militares, que mudança constitucional precisa ser feita e como realizá-la diante de um Congresso majoritariamente fisiológico e conservador?

Manuel Domingos Neto – O presidente da República e as forças políticas que o apoiam devem convencer o povo brasileiro da necessidade de uma Defesa Nacional que garanta a soberania e a democracia. Mesmo setores conservadores podem apoiar essa bandeira. Não vale pôr a culpa no Congresso quando nem sequer a ideia é ventilada. Há um recuo generalizado nos partidos de esquerda. O Congresso sempre foi fisiológico e conservador. Não tomará posições avançadas sem pressão popular.

IHU – Anos atrás, o STF cedeu à pressão de um general por meio de um tuíte. Em 2024, indiciou militares pela tentativa de golpe e assassinato do presidente. Como entender a postura da mais alta corte brasileira? Qual a importância do STF manter uma postura firme em relação aos militares neste momento?

Manuel Domingos Neto – A pressão exercida pelo general Villas-Bôas foi em 2016. Foi um grande golpe. A posição do STF foi vergonhosa. Esse general ainda não foi punido. Penso que a postura do STF mudou durante o governo Bolsonaro porque os ministros se sentiram ameaçados. Compreenderam o risco que corriam. Hoje, o papel do STF é importante, mas limitado. Não estamos diante de um problema legal, judicial, mas diante de um grande desafio político. As forças democráticas brincam com fogo ao deixar o caso nas mãos de juízes.

IHU – Como avalia a posição de Lula em relação aos militares?

Manuel Domingos Neto – Pelo que eu disse anteriormente, é desastrosa a posição de Lula de abdicar de sua condição de comandante supremo das Forças Armadas. Pelo bem da soberania e da democracia, o presidente não pode se isentar de suas responsabilidades constitucionais neste momento de avanço da extrema-direita, que atinge de cheio os organismos de força do Estado. Lula precisa comandar. Em vez disso, aceita placidamente ser comandado. Se o político não comanda o militar, ele passa a ser comandado.

IHU – Que episódios históricos mostram que toda vez que o Estado tentou “dialogar” com os militares a sociedade civil saiu perdendo? Por que não é possível ter diálogo com a caserna?

Manuel Domingos Neto – Militar é treinado para receber ordens, não para dialogar feito um político ou um diplomata. No mais, os militares vivem em permanentes contendas corporativas: o marinheiro acha que é mais importante que o soldado terrestre; o aviador se vê como o mais decisivo… Dissertei sobre isso em meu último livro. Só o político pode de fato definir os rumos da Defesa Nacional. Se isso ficar nas mãos das corporações, viveremos patinando neste domínio. Está claro que devemos priorizar a força aeronaval. Mas isso jamais ocorrerá enquanto as corporações detiverem a última palavra quanto aos seus destinos.

Não há exemplos históricos de diálogo com militares. Todos os presidentes abdicaram da condição de comandante supremo. A autonomia corporativa sempre prevaleceu. Nem Vargas mandou efetivamente nos militares. Boa parte das iniciativas do Estado Novo foram propostas por militares, que sentiam a necessidade de modernizar o país.

IHU – Mensalmente, o Estado brasileiro gasta R$ 140 mil com salários e pensões a militares que foram indiciados pelo MPF pela morte de Rubens Paiva. O que o caso revela sobre a relação do Estado e de nossa sociedade com os militares?

Manuel Domingos Neto – Não acho que o valor dos salários dos militares seja a questão principal. Sei que isso causa muita indignação, mas o problema mais grave é o volume de tropas inaptas e de quartéis sem serventia para enfrentar eventuais hostilidades estrangeiras. Há centenas de unidades militares que poderiam ser fechadas em proveito de uma Defesa efetivamente capaz.

As compras externas representam também um grande desperdício. Costumo dizer que quem compra armas e equipamentos de potências estrangeiras vende a alma ao diabo. Não tem autonomia para decidir com quem e como lutar. Esbagaça dinheiro público.

IHU – O senhor é autor do livro O que fazer com o militar? Anotações para uma nova defesa nacional (2021). Pode comentar do que trata a obra e como ela ajuda e compreender a questão da militarização no Brasil?

Manuel Domingos Neto – No livro, tentei explicar simplificadamente as múltiplas e variadas iniciativas necessárias para uma reforma militar. Resumi décadas de estudos e reflexões. Corporações militares são organismos altamente complexos, fruto de experiências milenares. Impossível mexer em organizações deste tipo sem graves consequências. Por exemplo, ao adotar o Novo Arcabouço Fiscal, o governo resolveu alterar a idade para a aposentadoria do militar. Ora, isso alteraria fortemente as regras de promoção hierárquica. Criaria muita confusão deletéria. O governo terminou recuando. Não dá para mexer nas estruturas militares sem estudo especializado prévio.

Minha intenção foi contribuir para melhorar o nível do debate em torno dos militares. Creio que nossas elites políticas são despreparadas nesta matéria. Isso é muito preocupante. Enquanto o político não ditar a Defesa Nacional, estaremos não apenas indefesos neste mundo conturbado, mas a democracia estará correndo risco.

Manuel Domingos Neto (Foto: Felipe L. Gonçalves/Brasil247)

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