Agência Fiocruz de Notícias (AFN)
Está programado para ter início nesta quarta-feira (5/2), no Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 635), que questiona a letalidade e o desrespeito aos direitos humanos nas operações policiais no Rio de Janeiro. O julgamento, que tinha sido suspenso em novembro do ano passado, contará com a Fiocruz como Amicus curiae. A expressão é utilizada para designar um terceiro (pessoa, entidade ou órgão com interesse ou especialidade no assunto em discussão) que participa de um processo judicial para fornecer informações relevantes aos juízes.
Em nota oficial divulgada nesta terça-feira (4/2), a Fiocruz destaca a proposição de um plano voltado à redução da letalidade policial e ao controle das violações de direitos humanos, democraticamente construído, pautado na preservação da vida e da dignidade. “Embora o estado do Rio de Janeiro tenha um número exorbitante de territórios dominados por grupos criminosos armados, o uso da força de forma indiscriminada pelas forças do Estado não vem diminuindo, ao longo do tempo, esses domínios criminosos, o que por si só deveria ser um indício de que outras estratégias, pautadas em ações de inteligência, devem ser adotadas como caminho preferencial”.
Confira a nota na íntegra:
“A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cuja sede está localizada na zona Norte do Rio de Janeiro, vem cotidianamente sentindo os impactos da violência armada, que afetam a saúde física e mental de seus trabalhadores e, de forma ainda mais intensa, a saúde e a vida da população moradora das periferias da cidade. Nesse sentido vem historicamente dialogando com a sociedade civil e com instituições públicas sobre violência, violência armada e violência policial, temas que se colocam como pontos centrais de atenção para um Estado que se deseja Democrático de Direito, além de desenvolver inúmeras produções acadêmicas e intervenções sobre essa temática, buscando aprofundar a compreensão da relação entre violência e saúde sob a perspectiva da determinação social da saúde.
A Fiocruz foi habilitada, no dia 25 de outubro de 2024, na qualidade de Amicus Curiae, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, mais conhecida como ADPF das Favelas, cujo julgamento se inicia no dia 5 de fevereiro, no Supremo Tribunal Federal. Em sua petição inicial a ADPF 635 teve por objetivo reconhecer e corrigir violações aos preceitos fundamentais da Constituição cometidas pelo Estado do Rio de Janeiro em sua política de segurança pública, especialmente relacionadas à letalidade da atuação policial, direcionada principalmente contra a população pobre e negra das comunidades. Entre outras medidas destaca-se o desenvolvimento de um necessário plano de redução da letalidade policial e o controle das violações de direitos humanos.
A gravidade da situação foi reconhecida internacionalmente, como evidenciado pela condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília v. Brasil, em 16 de fevereiro de 2017. Neste julgamento, a Corte apontou falhas do Estado na investigação e punição dos responsáveis por execuções extrajudiciais cometidas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Essa histórica decisão ressalta a urgência e a importância de medidas efetivas para lidar com a violência policial e garantir o respeito aos direitos humanos.
Destacamos que a questão da violência armada é bem mais ampla e complexa do que a violência policial, sendo uma questão transversal que afeta toda a sociedade e que abarca o necessário controle da criminalidade, roubo de cargas, fiscalização e controle de armas de fogo e garantia de atuação segura para as forças policiais, isso para falar apenas das questões diretamente relacionadas à questão, mas que também envolve a promoção de uma série de direitos como educação pública de qualidade, direito à moradia, à geração de renda sustentável e ao lazer, assim como o enfrentamento da desigualdade social.
No entanto, especialmente em relação à violência por parte das forças do Estado – e como aponta a ADPF em questão – acreditamos que o Poder Público, especialmente em relação às forças de segurança pública, que representam o Estado no cotidiano da população, deve sempre adotar políticas que não coloquem em risco a vida dos cidadãos e nem de seus policiais e que contribuam para ampliar a legitimidade desta instituição junto à população. Assim, com o apoio à ADPF 635 reiteramos a necessidade de um esforço conjunto para a construção de uma segurança pública cidadã, onde as forças policiais sejam parte de um processo de garantia de direitos que assegure a segurança de toda a população.
Embora o estado do Rio de Janeiro tenha um número exorbitante de territórios dominados por grupos criminosos armados, o uso da força de forma indiscriminada pelas forças do Estado não vem diminuindo, ao longo do tempo, esses domínios criminosos, o que por si só deveria ser um indício de que outras estratégias, pautadas em ações de inteligência, devem ser adotadas como caminho preferencial.
Dessa forma, a proposição de um plano voltado à redução da letalidade policial e ao controle das violações de direitos humanos, democraticamente construído, pautado na preservação da vida e da dignidade, sobretudo dos moradores de favelas, em sua maioria pessoas negras, é algo que acreditamos ser de fundamental importância, contribuindo para o enfrentamento ao racismo institucional e para o amadurecimento para a segurança pública do estado do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, subscrevemos as medidas solicitadas pela ADPF, que visam combater a violência policial e garantir o respeito aos direitos fundamentais no Estado do Rio de Janeiro. Para tanto destacamos algumas medidas pleiteadas pela ação: presença de ambulâncias e de equipes de saúde nas operações policiais; a instalação de equipamentos de GPS e sistemas de gravação em viaturas e fardas policiais; a fixação e publicização de protocolos públicos de uso proporcional e progressivo da força; elaboração, armazenamento e disponibilização de relatórios das operações de segurança para devido controle pelos órgãos e pela sociedade; o aperfeiçoamento do treinamento dos policiais fluminenses e a melhoria das suas condições de trabalho e saúde; o afastamento temporário de agentes envolvidos em mortes durante operações policiais; a proteção à inviolabilidade de domicílio, com determinação para que mandados de busca e apreensão domiciliar indiquem precisamente o local, motivo e objetivo da diligência, proibindo mandados coletivos ou genéricos; a vedação ao uso de helicópteros como plataformas de tiro ou instrumentos de terror; a excepcionalidade da realização de operações policiais em áreas próximas a escolas, creches, hospitais e postos de saúde; o aprimoramento das investigações de possíveis crimes cometidos por policiais – de forma a combater a impunidade; a preservação de todos os vestígios de crimes em operações policiais e a documentação fotográfica das provas periciais, a fim de evitar remoção indevida de cadáveres ou descarte de provas; a instauração de procedimentos investigatórios autônomos pelo Ministério Público nos casos de violações por agentes de segurança e também a prioridade de apuração e responsabilização de crimes praticados contra crianças e adolescentes pelas forças de segurança.
Dessa forma, a Fiocruz, por meio do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves) da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), reitera que o controle de excessos cometidos pelo Estado é um ponto fundamental para a construção de uma segurança pública cidadã e para um Estado efetivamente democrático e inclusivo, que não vitime com tamanha banalidade e continuidade seus policiais e sua população.”