Apesar da revogação da Lei, Estado do Pará deve ser responsabilizado pelas violações durante as mobilizações

Terra de Direitos

Após 30 dias de mobilizações, o movimento unificado de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e educadores do Pará alcançou a revogação da Lei 10.820/24, aprovada por unanimidade pela Assembleia Legislativa do Estado nesta quarta-feira (12). A medida que modificava significativamente o Estatuto do Magistério do Pará, com a extinção do Sistema de Organização Modular de Ensino (Some) e o Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei), foi votada e sancionada em dezembro de 2024 sem nenhum debate público, participação social ou consulta prévia aos povos indígenas e tradicionais – como estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Essa foi apenas a primeira violação de direitos cometida pelo Estado do Pará e iniciou um processo de mobilização histórico que culminou na revogação da lei. Diversas outras violações foram cometidas pelo Estado durante o período de mobilização indígena e estão registradas no dossiê “Violações de Direitos na Luta em Defesa da Educação Escolar Indígena” organizado por Terra de Direitos.

O projeto de lei enviado pelo governador Helder Barbalho (MDB) à Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), que atacava o direito à educação, foi o ponto de partida para uma série de violações de direitos dos povos indígenas. Desde o cercamento e o corte de energia na sede da Secretaria de Educação do Estado (Seduc), ocupada pelos indígenas, até o uso de um grande aparato militar nas reuniões de negociação entre o governador e as lideranças do movimento, direitos fundamentais como a livre manifestação, expressão, informação, autodeterminação e autonomia dos povos indígenas foram gravemente infringidos pelo Estado do Pará.

Auricélia Arapiun, da presidente do conselho deliberativo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), foi uma das lideranças a frente do movimento de ocupação da Seduc. Ela conta como foi a repressão autorizada pelo Estado nos primeiros dias de movimento.

“No primeiro dia foi o momento mais tenso. Teve outros momentos de tensão, mas quando eles fecham o portão, enche de polícia, de cavalaria, proíbem a entrada de alimentação de água, desligam o ar-condicionado, a energia, água e colocam o spray de pimenta nos banheiros foi bem difícil. Então o Estado agiu de forma ignorante, rude e violenta com os povos indígenas ali naquele momento. Proibindo não só a entrada de indígenas e professores, mas também de defensores, advogados e advogadas. O Estado queria esconder isso [a ocupação]”.

Profissionais do jornalismo, comunicadores indígenas e populares também tiveram direitos cerceados. No dia 14 de janeiro, quando se iniciou a ocupação na sede da Seduc, lideranças do movimento indígena exigiram a presença da imprensa. No entanto, os profissionais foram impedidos de entrar no prédio por policiais. Entrevistas, fotos e gravações foram realizadas em meio as grades do portão de entrada. Advogados também foram impedidos de atuar na garantia de direitos dos manifestantes.

Bruna Balbi, da Terra de Direitos – que acompanhou a ocupação da BR-163 enquanto assessora jurídica do CITA – destaca que o Estado atuou violando sistematicamente direitos dos povos indígenas. “O governo estadual só reverteu a Lei 10.820 por conta da pressão popular e ainda assim esse processo de mobilização dos povos indígenas sofreu com inúmeras violações de direitos”. A assessora jurídica aponta ainda que tanto na ocupação da BR-163 quanto na Seduc, o direito à livre manifestação foi constantemente ameaçado.

“Tanto o Estado do Pará quanto a União atuou judicialmente para impedir as mobilizações. Pedidos de reintegração de posse foram movidos para desocupação da BR-163 e da sede da Seduc. Os processos e as decisões que saíram nesses quase 30 dias deixaram as lideranças expostas a pressão e ameaças de retirada dos locais, inclusive, com a possibilidade do uso da violência, sem o devido diálogo interétnico e intercultural”.

Lucas Tupinambá, vice coordenador do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA) e uma das lideranças do movimento de ocupação da BR-163, relata como se deu as tentativas de criminalização e deslegitimação do movimento.

“Durante os últimos 30 dias que estamos ocupando o prédio da Seduc em Belém, e os 28 dias de ocupação da BR 163, ocorreram diversas violações por parte do Estado contra nós povos indígenas. Algumas delas foram, por exemplo, a maneira como eles agiram na tentativa de reintegração de posse, como eles tentaram notificar as lideranças indígenas, e até mesmo a tentativa de se infiltrar no nosso meio para pegar nossos nomes, notificar judicialmente e criminalizar as lideranças”.

Para reunir informações sobre os casos de violações cometidas pelo Estado durante as mobilizações dos povos indígenas e incidir pelas responsabilizações, a Terra de Direitos organizou o dossiê “Violações de Direitos na Luta em Defesa da Educação Escolar Indígena”.

“A gente espera sim a responsabilização do estado por tudo o que foi feito. Ele [governador] espalhou muito fake news. E a gente segue na firme na luta”, declara Auricélia Arapiun.

Denúncias

O dossiê irá subsidiar a busca por medidas de responsabilização do Estado do Pará. No dia 05 de fevereiro, o documento foi entregue para o Secretário Executivo das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, Simon Emmanuel Kervin Stiell, em uma reunião de escuta da sociedade civil realizada em Brasília (DF) no começo de fevereiro para ouvir contribuições discutir sobre a Conferência das Partes da ONU sobre Mudança do Clima (COP 30), que acontecerá no Brasil em novembro deste ano.

Coordenadora de Incidência Política da Terra de Direitos, Gisele Barbieri relatou ao Secretário da ONU a situação de violações de direitos no Pará, estado que receberá a COP 30. Ela pontuou a necessidade da garantia do direito à manifestação durante o evento

“Nos preocupa as inúmeras violações, principalmente ao direito à manifestação que no Brasil é um direito constitucional, registradas durante as mobilizações que reivindicavam a revogação da Lei 10.820/2024. Por essa razão, também solicitamos a atuação da UNFCCC nas esferas adequadas, para garantir o direito à livre expressão no país nesse período que antecede o evento e, principalmente, durante as semanas da Conferência das Partes”

A deputada estadual do Pará, Lívia Duarte (PSOL), junto as lideranças indígenas do movimento, acionou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos contra o governo por violações de direitos humanos dos povos originários durante a ocupação da Secretaria de Educação (Seduc). Além dessas diversas outras denúncias nacionais e internacionais foram realizadas durante o período das mobilizações.

Acesse aqui o dossiê Violações de Direitos na Luta em Defesa Escolar Indígena no Pará

Imagem: Além da ocupação da sede da Seduc, em Belém, povos indígenas também ocuparam rodovias federais, como a BR 163, na altura de Belterra (Foto: Walter Kumaruara/Cita)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

5 × 3 =