O discurso do “empreendorismo” glamuriza a precariedade e passa pano para as desigualdades
De vez em quando, ressurge nas redes a história edificante do bolo de pote. Numa pesquisa rápida, sem a pretensão de ser completa, encontrei referências a ela desde 2021, com novos surtos a cada ano ou ano e meio.
O texto padrão, reproduzido tal e qual ou com adaptações, é intitulado “Diferença entre preço e valor”. Nem vou reclamar do mau uso dos conceitos; afinal, é uma postagem motivacional, não um tratado de economia política.
A historinha é simples. O narrador (e herói) encontra uma mulher vendendo bolo de pote na rua e compra um. O amigo que o acompanhava diz que não gosta de bolo de pote e ele concorda, também não gosta. “Então por que você comprou?”, pergunta o amigo.
A resposta tem duas dimensões. Uma é que, com aqueles cinco reais, a vendedora de bolos vai comprar alguma coisa numa venda e, assim, está movimentando a economia.
Pode ser, embora a postagem não destaque esse ponto, um argumento em favor da preferência pelo pequeno comércio. Mas não explica por que comprar um produto do qual não se gosta, em vez de algum outro.
Aí entra a outra dimensão. O herói argumenta que, ao comprar, está garantindo que a vendedora de bolos não se sinta desmotivada e não pare de correr atrás de seu sonho. “Estou investindo em sonhos”, diz ele, um homem bom.
(Ou nem tão bom assim. A moral da história do bolo de pote é “invista em sonhos, que a vida devolve em dobro”. Em suma, a motivação sempre é egoísta. Mas essa é outra conversa.)
Sonho? Ficar na rua, embaixo de sol e de chuva, tentando empurrar aos passantes um bolo, além de tudo de pote?
Na postagem, a vendedora de bolos é a encarnação da “empreendedora” da ficção neoliberal. Não se trata de eventualmente comprar o bolo para ajudar um trabalhador ferrado, que está se virando como pode, já que não consegue um emprego que lhe dê direitos.
Não. Nessa narrativa, vender bolo na rua é um “sonho”. A vendedora há de vencer na vida graças a seus próprios méritos – espírito empreendedor, capacidade de poupança. Com um empurrãozinho, claro, das pessoas de bom coração.
Empreendedorismo, meritocracia, superação e resiliência formam o núcleo da ideologia neoliberal voltada às populações mais pobres. Por um lado, cada um se torna responsável por sua própria situação: se ela não melhora, é porque está faltando alguma das qualidades necessárias.
Por outro, todas as soluções são individuais. Cada um deve se esforçar para ultrapassar os outros na competição por um lugar ao sol na estrutura social tal como ela é e como permanecerá. A solidariedade entre os explorados, que sempre foi a argamassa de sua ação coletiva com intuito transformador, é exilada. Em seu lugar temos, quando muito, a caridade, como no caso do herói do bolo de pote.
O pior é que esse discurso está presente no governo Lula, que não se cansa de promover os incentivos que dá ao “empreendedorismo popular” como sendo o caminho para a edificação de um Brasil mais justo. E em muito da esquerda, entusiasmada com relatos de “superação”.
Lembro de Djamila Ribeiro, alguns anos atrás, em sua coluna na Folha, exaltando “Augusta de Campos, apelidada de Augusta Mulata, uma mulher negra que foi prostituta e depois se tornou dona de casa de prostituição no começo do século 20, no Rio de Janeiro, algo até então impensável para uma mulher negra”.
“Uma mulher que se virou como pôde em situações de grandes percalços e, mesmo difamada pelos jornais e perseguida pela polícia, transformou a realidade em que vivia – e sua casa se tornou a mais conhecida do Rio de Janeiro naquela época”.
Embora dizesse que focar em “mulheres em situação de prostituição” (sic) desvelava “uma lógica ainda presente do sistema colonial” (?), a colunista concluía que a história de Augusta conta “sobre como muitas dessas mulheres empreenderam de forma brilhante nas duras condições a que eram submetidas”.
A cafetina, então, tornava-se um modelo de superação.
É isso com que sonhamos? Um mundo em que a possibilidade de explorar os outros esteja aberta a todas e todos, só dependendo de seus méritos e da sorte?
E vamos, então, bater palmas para a cafetina de sucesso, para o pistoleiro de aluguel de boa clientela, para o torturador condecorado, para a bilionária meritocrática, todos exemplos do mundo de “igualdade de oportunidades” que se anuncia?
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iluminura medieval na Biblioteca Britânica