Mulheres sobrecarregadas no cuidado e na crise climática

A crise climática tem gênero, classe e cor. Portanto, a solução para ela também precisa ter um recorte social

Cássia Caneco e Kelly Agopyan, Le Monde Diplomatique

As mulheres brasileiras dedicam o dobro do tempo dos homens aos cuidados com a família e aos afazeres domésticos não remunerados, segundo a pesquisa “Uso do Tempo no Brasil” (SNCF, 2023). Essa carga invisibilizada é exacerbada pelo aumento das temperaturas, tornando-se um fator de risco para a saúde e o bem-estar dessas mulheres.

São Paulo, conhecida historicamente como a “terra da garoa”, tem sentido de forma intensa os impactos das mudanças climáticas. O aumento da frequência de chuvas volumosas, intercaladas por períodos prolongados de calor extremo, agrava as desigualdades socioambientais na cidade.

Os bairros que apresentam um microclima urbano mais ameno, caracterizados por maior arborização, concentram predominantemente uma população branca e de alta renda. Em contraste, as regiões periféricas, onde vivem majoritariamente pessoas negras e de baixa renda, registram temperaturas até 10°C mais altas, conforme aponta o estudo Sampa em Foco: Raio X do Direito à Cidade em São Paulo, do Instituto Pólis. Essa disparidade térmica é consequência direta de fatores como a desigualdade na distribuição das áreas verdes. Soma-se a isso a falta de condições adequadas de moradia (ventilação, acesso à água potável, à energia elétrica etc.), que impedem a adaptação ao calor, tornando as casas verdadeiros fornos, enquanto as ruas atingem temperaturas escaldantes.

Dentro das moradias superaquecidas, as mulheres, já sobrecarregadas com as responsabilidades do cuidado, enfrentam condições ainda mais adversas. Como principais cuidadoras de crianças, idosos e pessoas doentes ou com deficiência, são elas que lidam diretamente com os impactos do calor extremo sobre a saúde da família. O aumento da temperatura intensifica quadros de desidratação, problemas respiratórios e outras doenças crônicas (Ministério da Saúde, 2025), tornando a rotina dessas mulheres ainda mais exaustiva. As condições de vulnerabilidade que impedem o alívio momentâneo do calor agravam também o desgaste físico e emocional dessas mulheres.

A crise climática também afeta diretamente a segurança alimentar. O calor extremo prejudica a produção agrícola, elevando os preços dos alimentos e dificultando o acesso a uma alimentação saudável. Sobre isso, cabe também dizer que são as regiões periféricas da cidade de São Paulo que têm menos acesso a estabelecimentos que comercializam alimentos frescos e orgânicos, o que aumenta o potencial de insegurança alimentar (INSTITUTO PÓLIS, 2024).

Há também uma dimensão de gênero, que não deve ser invisibilizada: dos domicílios brasileiros que estão em situação de insegurança alimentar, 59,4% são chefiados por mulheres (IBGE, 2024). A má nutrição enfraquece ainda mais o organismo das pessoas expostas a essas condições extremas, tornando-as mais vulneráveis a doenças. Sem políticas públicas eficazes para garantir acesso à água, à energia acessível de qualidade e à segurança alimentar, a população mais pobre – e especialmente as mulheres, que são as principais responsáveis pelo sustento e cuidado familiar – segue pagando o preço…

É urgente investir em infraestrutura urbana para mitigar os impactos do calor. Áreas verdes, acesso à alimentação adequada, fortalecimento da agricultura familiar e hortas urbanas são soluções necessárias. Moradia digna, saneamento público e programas de adaptação devem ser participativos, levando em conta a realidade das periferias, que são as que sofrem de forma mais intensa com os efeitos extremos das mudanças climáticas, mas que, ao mesmo tempo, são as que menos podem se preparar e se recuperar de seus impactos.

Além disso, é fundamental a ampliação da oferta de creches e centros de acolhimento para idosos que tenham instalações com condições térmicas adequadas, para que possam redistribuir parte da carga de cuidados que recai unicamente sobre as mulheres. Sobre isso, o estudo Sampa em Foco (INSTITUTO PÓLIS, 2024) também apontou a distribuição desigual dos centros para crianças e adolescentes (CCAs) na cidade de São Paulo, apontando o déficit de vagas em regiões que mais necessitam desse tipo de serviço, que oferece atividades socioeducativas no contraturno escolar para crianças entre seis e 14 anos, além de uma refeição e lanche, contribuindo, portanto, para a própria segurança alimentar das famílias.

Também é necessário cuidar de quem cuida: promover programas de apoio às necessidades específicas das cuidadoras para que possam realizar atividades de cuidado sem comprometer sua própria saúde física e mental. É essencial que o poder público invista na arborização das periferias, plantando árvores em ruas, praças e terrenos baldios e realizando a manutenção adequada das áreas verdes, reduzindo a desigualdade térmica e promovendo o direito ao bem-estar e à dignidade.

A crise climática tem gênero, classe e cor. Portanto, a solução para ela também precisa ter um recorte social. O futuro das cidades depende da construção de políticas que garantam a qualidade de vida para todos, sem deixar as mulheres, principalmente as mais pobres, carregando o peso e o calor das mudanças climáticas sozinhas.

Cássia Caneco é ediretora executiva e gestora cultural do Pólis e Kelly Agopyan é assessora de projetos.

Referências:

IBGE. Segurança alimentar nos domicílios volta a crescer em 2023. [online], 2024. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39838-seguranca-alimentar-nos-domicilios-brasileiros-volta-a-crescer-em-2023. Acesso em: 25 fev. 2025.

INSTITUTO PÓLIS. Sampa em foco: raio X do direito à cidade em São Paulo [online], 2024. Disponível em: https://polis.org.br/estudos/sampa-em-foco/. Acesso em: 25 fev. 2025.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Ondas de calor [online]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/o/ondas-de-calor. Acesso em: 25 fev. 2025.

SNCF. Nota Informativa n.1 / 2023: As mulheres negras no trabalho de cuidado. MDS/SNCF, 2023.

Foto: DW

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