Os passos à frente em equidade racial na saúde

Assessoria criada por Nísia Trindade no ministério tem conseguido avanços na saúde integral para a população negra. Seu trabalho integra secretarias e assegura a luta contra o racismo no SUS. Mas ainda há muito a se conquistar – em momento político de retrocessos

por Gabriela Leite, em Outra Saúde

Uma maior participação de movimentos sociais nas políticas voltadas à equidade racial dentro do Ministério da Saúde (MS) era uma reivindicação antiga, que encontrou força no momento de transição do governo Lula 3. Após a devastação de Bolsonaro na pasta havia muito a se reconstruir, em especial em relação à Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Empossada, a ministra Nísia Trindade percebeu a relevância do tema e instituiu, em seu próprio gabinete, a Assessoria para Equidade Racial em Saúde.

Luís Eduardo Batista, liderança do movimento negro que já havia participado da construção do plano de governo da candidatura de Lula, foi o convidado para chefiar a assessoria. “Desde a sua criação, a tarefa da assessoria é transversalizar a temática da saúde da população negra em todos os programas, políticas e ações do Ministério da Saúde”, explicou ele ao Outra Saúde. “Então, o que a gente faz é incluir a temática da equidade racial seja nas propostas de assistência, seja nas de promoção de equidade.”

“A criação da assessoria foi um grande avanço”, ressaltou Hilton Pereira Silva, que é médico, professor da Universidade Federal do Pará e da Universidade de Brasília e membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da Abrasco. Ele explica que o movimento negro teve um papel importante, durante a tomada de posse do Ministério da Saúde por Nísia e sua equipe, para oferecer informação sobre o que havia sido desmontado na pasta e quais as necessidades e prioridades para a saúde negra no SUS.

O primeiro lugar na lista de urgências, pode-se dizer, é a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Promulgada em 2009, ela demora a ser posta em prática. Na verdade, é possível dizer que nos últimos anos ela anda para trás. Segundo os dados do assessor Luís Eduardo, em 2018, mais de mil municípios haviam feito sua implementação – ou seja, adotado medidas e ações específicas para garantir a equidade no acesso à saúde da população negra, seguindo as diretrizes estabelecidas pela política nacional. Hoje, são apenas 371.

Nestes dois anos e três meses de reconstrução do MS, passos estão sendo dados, com a ajuda da assessoria de equidade racial. Em artigo de coautoria de Hilton, publicado no Outra Saúde, foi feito um mapeamento desses avanços. “Desde que [Luís Eduardo] foi empossado, ele e sua equipe têm conduzido diversas iniciativas nacionais e internacionais para promover a equidade racial na saúde, como o Encontro Nacional de Equidade no Trabalho e Educação no SUS, a Oficina Técnico-Científica sobre Mudanças Climáticas, Saúde e Equidade, e o Seminário Saúde sem Racismo”, escrevem os autores.

Mas esse progresso está sob ameaça, teme Hilton. A complexidade do momento político, com o avanço global da ultradireita, é o principal risco, para ele: “A gente tem visto um movimento internacional de desmonte de políticas de ações afirmativas, de políticas voltadas para a inclusão, e aqui no Brasil isso também é muito forte. Nós temos determinados setores do Congresso e da política que são muito reacionários a esse tipo de atuação e de intervenção”.

Para o professor, o momento é de ação do movimento negro e dos movimentos sociais para defender a política – somente dessa forma as conquistas poderão ser mantidas e terão a visibilidade que precisam. Garantir a permanência da equipe da assessoria, segundo Hilton, é importante nesse sentido. O novo ministro Alexandre Padilha deve ser sempre relembrado da importância de dar continuidade a essas iniciativas que foram tomadas durante a gestão de Nísia.

Relação com os movimentos sociais

Segundo relata Maria Zenó Soares da Silva, coordenadora da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (Fenafal), as portas da nova assessoria de equidade racial sempre estiveram abertas para os movimentos sociais. Para ela, após tempos muito difíceis para a saúde da população negra, a equipe de Luís Eduardo Batista “fez muita diferença, porque é um local para tratar de temas que antes não eram pautados”.

A federação que ela integra luta pelos direitos de pessoas com anemia falciforme, uma doença genética que tem maior prevalência entre pessoas negras, devido à herança genética associada a ancestrais africanos. Estima-se que cerca de 95% dos casos de doença falciforme ocorrem nessa população. Maria conta que, devido ao racismo institucional, os avanços no cuidado de pessoas com a doença ocorrem, historicamente, com uma lentidão inaceitável.

Ainda hoje, “é de grande dificuldade o acesso ao tratamento adequado, ao cuidado integral”. Mesmo atingindo uma população em grande vulnerabilidade, e sendo uma doença grave, com alta mortalidade e morbidade, não é considerada uma deficiência – o que barra o acesso dessas pessoas ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), por exemplo, mas também o acesso a cotas de vários tipos, segundo Maria.

Ela conta que o diálogo com a assessoria é muito aberto. “A gente sabe que não é fácil estar neste lugar, mexer no vespeiro do racismo. E quando o ministério cria essa assessoria, já assumindo que o racismo existe e que alguma coisa deve ser feita, é algo muito importante”, defende. Maria acredita que é preciso dar continuidade a esses trabalhos, para que os movimentos não tenham que “começar do zero” mais uma vez. “Ainda temos muito em que avançar.”

Política de saúde quilombola

Luís Eduardo Batista conta que, entre os atores com quem se reuniu, estavam as comunidades quilombolas. “Lideranças disseram: faz sentido termos a Política de Saúde da População Negra (PNASQ), mas as populações quilombolas têm demandas específicas”, e isso foi acolhido pela ministra, segundo ele. Uma série de estratégias começam a ser desenvolvidas, e hoje está aberta uma consulta pública para a Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola.

Segundo o plano de ação da assessoria, essa política deve ser publicada até o meio do ano. Hoje, seu texto destaca a importância de reduzir as iniquidades, ampliar o atendimento por meio da telessaúde, valorizar as práticas culturais e tradicionais das comunidades quilombolas, combater o racismo ambiental e garantir a participação no controle do SUS. A consulta pública fica aberta para contribuições até dia 31/3.

Entre os objetivos da assessoria para 2025, além de PNASQ, estão a revisão da Política Nacional das Pessoas com Doença Falciforme; a instalação de Comitês de Equidade na Rede de Atenção Psicossocial (Raps); o acompanhamento da Rede Alyne, novo nome da iniciativa que busca reduzir as mortes maternas e ampliar o acesso a saúde de mães e bebês; além de planos para a educação na saúde, a resposta a desastres climáticos e a requalificação da Saúde Indígena.

“Ter ações afirmativas na contratação de pessoal do Ministério da Saúde é estratégico”, reflete Luís Eduardo, “mas ter a medicação para as pessoas com doença falciforme é fundamental; ter uma primeira infância antirracista é fundamental; garantir o respeito às religiões afro-brasileiras nos institutos e nos hospitais federais é fundamental”.

E nada disso se concretizará sem a ação da sociedade, reforça Hilton Silva: “Somente com a mobilização social, com a organização dos movimentos, como tem sido sempre, é que essas pautas vão continuar a ter a visibilidade que precisam.” E, sobre o ministro Padilha, ele tem esperança de que haja continuidade: “Eu acredito que ele tem compromisso com a saúde da população negra, mas é muito necessário que a gente se mobilize” para continuar demonstrando para ele a importância da continuidade das iniciativas, defende Hilton.

Créditos: Daniel Tavares/Prefeitura da Cidade do Recife

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