‘O Guarani’ de Ailton Krenak: movimento e as limitações culturais de seus críticos

“Que faço com a minha cara de índia?”
Eliane Potiguara: Brasil, in Metade cara, metade máscara

Por Maurício Brugnaro Júnior, no Le Monde Diplomatique Brasil

Recentemente O Guarani — obra prima de Carlos Gomes e originalmente escrita por José de Alencar — voltou ao centro do debate cultural ao ganhar a leitura poética através das mãos e olhares atentos de Ailton Krenak, importante ambientalista, ativista indígena e filósofo brasileiro, subvertendo protagonismos e relações de poder dentro e fora dos palcos, fazendo por movimentar o cenário da produção e consumo cultural brasileiro. Nessa nova visão, o espetáculo incorpora elementos da cosmologia indígena e traz os próprios indígenas em papéis de relevância no Theatro Municipal de São Paulo.

Por mais que tenha ocorrido a tentativa de construção de um herói nacional durante o romantismo — mais especificamente no período literário indianista — na figura de Peri, não é possível dissociá-lo de uma caricatura que ainda segue os ideais elitizados e ocidentalizados positivistas de “progresso” há muito arcaicos. Além disso, somam-se implicações de poder em diversos elementos, seja no sincretismo religioso e cultural, culminando na simbólica cena do casal formado por um indígena e uma portuguesa como fundadores da nação brasileira.

Ao longo deste texto não se questiona a qualidade ou validade da obra de José de Alencar ou Carlos Gomes, pois isto cabe em outro momento por se tratar de outra seara. Ademais, as ciências sociais e humanas brasileiras trataram de diversos modos tal recorte, sendo a leitura contemporânea mais crítica e pontual sobre as próprias produções e legitimações acadêmicas e culturais.

O foco é compor uma resposta aos críticos dessa nova interpretação pelos olhos de Krenak. Não pretendo me estender com academicismos e longas citações, algo que acredito não ser necessário, pois, aparentemente, tal repertório não é compartilhado e compreendido por aqueles que aqui critico. Assim, busco apenas ocupar a esfera pública e negar o domínio contínuo de seus discursos. Dessa forma, me direciono às suas ideias que são públicas e não suas pessoalidades.

Os críticos culturais da nova montagem de ‘O Guarani’

O primeiro ponto a se destacar é sobre o identitarismo no discurso público brasileiro, aqui exemplificado numa crítica de Tiago Cordeiro, no dia 11 de fevereiro, num jornal que atua como veículo do conservadorismo brasileiro. Não é surpresa que o autor não trate de maneira direta o tema do identitarismo, mas use conceitos como “obras deturpadas” ao referenciar uma cena em que a violenta — histórica e simbolicamente — estátua do bandeirante Borba Gato pega fogo, clara alusão aos episódios recentes de reparação histórica envolvendo a liderança de Paulo Galo; ou frases como “cortaram o balé e inseriram um grupo de indígenas gritando, sem nenhuma relação com a obra original”, evidenciando a estática do pensamento e a limitação do movimento cultural.

Adiante na fraca crítica, Cordeiro indica que não há avaliação criteriosa, mas uma “tendência de forçar a contratação de minorias, independentemente da competência”, tangenciando uma noção falha e errada de identitarismo tão corrente nos discursos atuais. Por fim, o autor chega no tema de cotas nas contratações — não poderia ser diferente, certo? —, essa ervilha no colchão da elite brasileira e — a ervilha imaginária — sentida nas classes médias que não se compreendem social e economicamente.

Indignado, o autor apenas menciona as especificidades do edital (“candidatas autodeclaradas negras (pretas ou pardas) ou indígenas”, para em seguida finalizar com uma seção sobre “prejuízo financeiro”. Quem diria que numa obra que envolve personagens indígenas seria certo haver profissionais indígenas?! Sendo o identitarismo, segundo Douglas Barros, algo que se constitui no termo que nomeia uma forma de gestão da vida social, alcançando tanto a esquerda quanto a direita do espectro político. Logo, o autor não passa nem perto de compreender ou realmente criticar o conceito e suas consequências.

Outra crítica veio dos eruditos maestro Júlio Medaglia e o romancista José Roberto Walker, ambos com extensa e importante contribuição para a cultura nacional, publicada na Folha de São Paulo no dia 14 de fevereiro. Apesar disso, não deixam de revelar o caráter elitista e estático de sua crítica. Numa breve síntese, essa crítica não toca em conceitos como identitarismo, mas, do alto da torre de mármore, se limita a apresentar a obra de Carlos Gomes exaltando-a, enquanto realiza comparações desvalorizadas com os acréscimos e transformações da nova visão.

Entre as diferenças ganham relevância os aimorés, que no original são tratados como vilões, enquanto na atualidade assumem o lugar da própria floresta, pois, justamente, a relação e a cosmologia de várias comunidades indígenas se constitui segundo outra lógica, outra epistemologia que não a mercadorização ocidental. Outro ponto questionado é o uso de determinados instrumentos musicais, como o batuque acompanhado de um violão e da rabeca, seguido da frase “os verdadeiros indígenas nunca ouviram esses sons”. Pois bem, há muito é conhecido pelos estudos antropológicos que os indígenas, principalmente os guaranis possuem a característica de utilizar instrumentos musicais de cordas, como o mbaraka (violão) e a guyrapa-pe (rabeca), acompanhadas do ãgua-pu (tambor), takua-pu (bastão de ritmo) e do mbaraka-mirin (chocalho). Assim, associando sua história e sua própria reinterpretação de acontecimentos e fenômenos segundo lógicas locais, carregando de simbolismos. Logo nos questionamos: qual a visão sobre os indígenas têm os autores da crítica? Ao que tudo indica a que buscam conservar, a mesma descrita por homens em determinadas posições de poder e status sociais durante o século XIX e XX.

Ao final da crítica, os autores declaram que “os indígenas que Alencar e Gomes glorificaram, hoje são usados para depredar essa obra”, ou seja, em outros termos, os indígenas — esses reais, como Krenak — estão deturpando os indígenas criados por Alencar e Gomes. Isso se resume na defesa de um Brasil elitizado e limitado de final do século XIX, tão persistente ao longo do século XX como nas lutas da Constituição Federal de 1988 até atualmente, carregado de proselitismo conservador.

Crítica das críticas

Se as veias brasileiras e latino-americanas continuam abertas, há de se revisitar os motivos e repensar suas implicações teóricas e práticas. Recuperemos um momento importante da identidade indígena: a categoria “índio” — tal como “negro” — surgiu durante a colonização da América Latina ao reduzir uma multiplicidade de povos e etnias a apenas um termo através de violência física, material e simbólica. Assim, também vale lembrar que “a identidade nacional está profundamente ligada a uma reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à própria construção do Estado brasileiro”, como demonstraram Júlia Ferraz e Maurício Brugnaro Júnior.

Dessa forma, a própria construção de uma memória coletiva nacional envolve a criação, reprodução e transformação constantes ao longo da história, sendo uma manifestação no cotidiano. Também a cultura, sempre passível de interpretação, é interesse de grupos e seus representantes, estes que decidem sobre o sentido da reelaboração simbólica de determinada prática cultural. Logo, Ailton Krenak tomou uma decisão de reinterpretação de um clássico — por que não?! —, aqui endossado; e seus críticos tomaram a decisão de manter o status quo dos estratos sociais desiguais.

A subversão proposta por Krenak revelou tanto a potência de sua cosmologia em instituições tipicamente ocidentais, como também o preconceito das elites acadêmicas, financeiras e culturais brasileiras. Como demonstrou Lucien Goldmann: toda realização humana se apresenta como um esforço para equilibração provisória entre o sujeito e o mundo ambiente, transformando ambos e sendo continuado por outro processo subsequente. Sempre é bom destacar que os sujeitos podem criar e receber influências e expressões artísticas, transformando repertórios, visando mobilidade e integração social, acompanhando e fazendo com que aconteça a movimentação cultural, pois se está em movimento é porque está vivo.

Maurício Brugnaro Júnior é mestrando em História pelo IFCH/Unicamp e graduado em Ciências Sociais nas ênfases de Sociologia, Ciência Política, Antropologia e Licenciatura na mesma instituição. É membro do Laboratório do Pensamento Político (PEPOL/Unicamp) e pesquisador associado do Núcleo Práxis de pesquisa, educação popular e pesquisa (USP).

Imagem: Cena de reprodução ‘O Guarani’. Crédito: Divulgação

 

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