A crise da publicação científica. Por Luis Felipe Miguel

Os artigos novos se contam aos milhões, mas a grande maioria deles não vale nada

em Amanhã não existe ainda

Não é de hoje que o modelo vigente de publicação científica, cujas bases foram estabelecidas a partir do século XIX, está em crise. A expansão do ensino universitário, com consequente aumento exponencial do contingente de pessoas qualificadas formalmente como pesquisadoras, transformou a publicação científica em um empreendimento gigantesco.

Existem dezenas de milhares de periódicos científicos em atividade no mundo. Vi uma estimativa de 2019 que falava em 40 mil, crescendo cerca de 3,5% a cada ano – o que significa que hoje estaríamos batendo na casa dos 50 mil.

A transição das revistas impressas para as eletrônicas, com o enorme barateamento da produção, acelerou o processo.

No total, cerca de 1 milhão de novos artigos por ano.

O principal motor de tanta produção não é o desejo de produzir conhecimento. É a necessidade de fazer currículo, diante da regra de “publicar ou perecer”, que se tornou universal no ambiente universitário.

Sem uma penca de artigos publicados, um jovem doutor não tem a menor chance em um concurso público. A lista de artigos é o primeiro item que conta para uma promoção, para uma bolsa, para um financiamento.

Numa ponta, isso gera incentivo para que se publique muita coisa sem relevância, que não acrescenta nada – na melhor das hipóteses, porcarias; na pior, fraudes.

Há uma inflação de autorias – agora, até nas humanas, tornou-se comum ver textos com uma fieira de autores. Nomes que ressurgem em combinações diferentes aqui e ali, inchando o currículo de todos.

E há também, claro, o mercado de venda de coautorias, por preços módicos, como tem sido denunciado na imprensa (sobretudo na área médica, em que as publicações são pré-requisito para a obtenção de residência).

Na outra ponta, as revistas são inundadas por uma multidão de originais, que não têm condição de processar.

Cortam alguns deles em decisão do corpo editorial (desk review), frequentemente de forma arbitrária e pouco transparente. Pelas boas práticas, a recusa no desk review deve ser fundamentada, mas o comum é ser oferecida uma resposta padrão – o que se entende, dado o volume de trabalho. Sobretudo no caso de revistas (como é o caso da maioria das brasileiras) em que os editores não recebem um centavo, nem sequer têm redução de sua carga horária como professores para exercer a função.

Os outros são mandados para pareceristas, nem sempre plenamente qualificados. Afinal, os pesquisadores mais capacitados não dão conta de atender às demandas de pareceres que recebem – novamente, um trabalho adicional, que não dá dinheiro nem prestígio. Um parecer elaborado seguindo o manual deveria exigir todo um trabalho de pesquisa e conferência dos resultados, mas quem tem tempo e energia para isso, em meio aos muitos compromissos profissionais? Grande parte dos pareceres (e falo a partir da minha experiência passada como editor) é simplesmente desleixada.

Nisso, prosperam as revistas predatórias, em que o pagamento de uma quantia módica garante a publicação de qualquer coisa.

As mudanças que vêm sendo introduzidas pelos periódicos (fim do double-blind, isto é, do anonimato mútuo entre autores e pareceristas; publicação na forma de preprints) estão longe de indicar qualquer solução para o problema.

Até porque as soluções não dependem só, nem mesmo principalmente, das próprias revistas.

É necessário repensar a dinâmica das carreiras universitárias, reduzindo a massacrante competição interna e a obrigação de publicar por publicar – buscando maneiras de introduzir avaliações qualitativas e talvez, no nosso caso, valorizando trajetórias de professores que não seja necessariamente pesquisadores.

Sim, isto é um tabu, dado o dogma da “indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Mas a gente sabe que na prática isso não existe. Proliferam pesquisadores de fancaria, que apenas fingem para, na prática, trabalhar menos. A indissociabilidade pode ser pensada no nível das instituições, não necessariamente de cada profissional.

Tudo isso reconhecendo que temos, sim, a obrigação de devolver à sociedade aquilo que elas nos paga – na forma seja de novos conhecimentos, seja da preparação de profissionais qualificados. Combater o produtivismo é combater a publicação pela publicação, apenas para “contar pontos”, e incentivar a produção científica de qualidade.

Não tenho nenhuma receita. Só sei que esse debate precisa ser travado.

Fernand Léger, O acrobata e sua parceirta (1948)

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