A sustentabilidade cenográfica de Lula 3. Por Bruno Araújo

no blog da Boitempo

A agenda ambiental ganhou força durante o governo Bolsonaro e passou a ser um dos elementos de diferenciação política entre os presidenciáveis em 2022. Nesse sentido, as peças publicitárias de Lula durante a campanha prometiam uma gestão alinhada às mais atuais preocupações ambientais e climáticas como contraponto ao negacionismo bolsonarista. Um trailer lindo que prometia ser sucesso de bilheteria.

A posse, em janeiro de 2023, reforçou essa expectativa: na ausência do ex-presidente, quem passou a faixa para Lula foram sete brasileiros e brasileiras. Lula seria empossado pelo povo brasileiro. Entre essas pessoas estava Cacique Raoni, importante liderança indígena e símbolo do (tardio) encontro pacífico entre o Estado Brasileiro e as populações originárias e tradicionais desta terra. E foi além! Marina Silva e Sônia Guajajara assumiram os ministérios do Meio Ambiente e Clima e de Povos Tradicionais, respectivamente.

Empolgado com a chance de encarnar o personagem de líder global, Lula convenceu a ONU e os outros países do mundo a trazer a Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas (COP) para Belém, na Amazônia brasileira. Que roteiro bem elaborado, com um arco do herói bem definido: Lula vence Bolsonaro em uma árdua batalha e reconquista o amor do mundo. As luzes se voltam para esse elenco simbólico, cuidadosamente posicionado para o mundo ver. Prometia ser uma peça bem dirigida, com figurino sustentável e roteiro aprovado pela opinião pública internacional, não fosse a mudança na Direção Geral da peça estaríamos celebrando ansiosos a contagem regressiva de vinte domingos para a COP 30.

No teatro, cenografia é a arte e a técnica de criar e realizar o espaço cênico, incluindo todos os elementos visuais que compõem a cena, como cenário, iluminação, adereços e figurinos. O objetivo é ambientar e ilustrar o espaço/tempo da peça teatral, materializando o imaginário e aproximando o público da representação. Portanto, o que o público vê se encerra na cenografia montada no palco, mas hoje eu e você, leitora e leitor, vamos nos aprofundar nos bastidores e roteiro do Lula 3.

Se por um lado Lula construiu um cenário verde e sustentável, o presidente escalou protagonistas no mínimo contraditórios. Basta sair da coxia para encontrar outro espetáculo, muito menos interessante: o ministro de Minas e Energia pressiona o IBAMA pelo licenciamento da perfuração de petróleo na Foz do Amazonas; o Plano Safra injeta bilhões no agronegócio que devasta (quatro vezes mais do que o valor destinado para agricultura familiar); o próprio governo colabora para aprovar o PL da Devastação; a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) realiza um leilão de petróleo e vende novos blocos de exploração por todo o país, inclusive na região da Foz do Amazonas; o governo articula para o Brasil ser sede de data centers famintos por água e energia… Nos bastidores dessa trama, o que impera é o velho roteiro do lucro acima da vida.

Essa desconexão entre o cenário que pinta o governo, o que se apresenta e o que seria realmente necessário para uma transição energética justa e mitigação climática tem nome: sustentabilidade cenográfica — uma política ambiental de fachada, que maquila destruição com discursos progressistas. É o greenwashing de Estado, um ambientalismo de vitrine, sofisticado e estratégico, que confunde a plateia e desacredita a luta climática, resultado de uma estratégia falida de conciliação de classes.

Em entrevista recente ao podcast Mano a Mano, o presidente afirmou ser favorável à transição energética, com a ressalva de que “o mundo não está preparado para isso agora”, caindo em um fatalismo petrolífero que serve de alavanca para a expansão dos poços de petróleo no país, incluindo na Foz do Amazonas. Lula também falou sobre a necessidade de exploração de petróleo como mecanismo financeiro para a tal transição, e afirmou que a Petrobras não possui nenhum acidente em sua história — aqui ele foi longe demais.

A fim de desfazer alguns mitos sobre a crença de que petróleo é riqueza, eu trago 11 reflexões que atestam o contrário:

1. O saldo final da exploração do petróleo, contabilizando suas riquezas e seus impactos, é devedor: uma pesquisa publicada na revista Nature estima que as emissões de gases de efeito estufa de 111 companhias petrolíferas e de gás tenham causado, coletivamente, US$ 28 trilhões em prejuízos relacionados somente ao calor extremo (há outros danos) entre 1991 e 2020.1

2. Lançando um rápido olhar para o Brasil, percebemos que a Petrobras obteve um lucro de R$ 36,6 bilhões em 2024, enquanto a estimativa dos danos causados pelas fortes chuvas (mais frequentes por conta da mudança climática) no Rio Grande do Sul soma R$ 90 bilhões.

3. É possível que até 85% da extração planejada pela Petrobras não gere lucro. Isso porque a produção não será rentável em um cenário climático que não ultrapasse 1,5ºC de aumento médio da temperatura global, por falta de demanda. Segundo o estudo das organizações internacionais, os empreendimentos da Petrobras só gerarão lucro se a rota da descarbonização mundial prevista pelo Acordo de Paris falhar e as temperaturas globais aumentarem 2,4ºC ou mais. E não é isso o que queremos, não é mesmo?

4. Em 2024, o estado do Rio de Janeiro e os municípios fluminenses receberam, juntos, R$ 44 bilhões, o que equivale a 75% da renda do petróleo distribuída para todo o país. O estado concentrou, sozinho, 82,6% da renda distribuída às unidades federativas, enquanto seus municípios concentraram 66,23% da renda distribuída às cidades. E mesmo assim, o Rio de Janeiro é o estado que paga o pior salário do Brasil para seus professores, privatizou Companhia de Água e Esgoto (CEDAE) alegando falta de recursos para gerenciá-la, e está em regime de recuperação fiscal.

5. A exploração do petróleo está intimamente ligada à necessidade crescente de energia do sistema capitalista para produção e circulação de uma quantidade cada vez maior de mercadorias e serviços. E a transição energética tem sido encarada pelo setor empresarial e industrial mais como uma nova fronteira energética com potencial de aumentar a capacidade produtiva e menos como substituição da matriz energética anterior (você pode saber mais sobre isso aqui).

6. Dados revelados pela ANP mostram que o Brasil teve, em 2024, um recorde de acidentes envolvendo a exploração de petróleo. Ao todo foram 731 ocorrências, maior valor da série histórica, que começou a ser contabilizada em 2011. Segundo o painel aberto da agência, o maior número tinha sido registrado justamente no ano anterior, em 2023, quando foram contabilizados 718 acidentes. Em 2022 foram 598. Apenas nos primeiros meses de 2025 já houve 115 casos.

7. Em 18 de janeiro de 2000, um duto da Petrobrás que ligava a Refinaria Duque de Caxias (Reduc) ao terminal Ilha d’Água, na Ilha do Governador, rompeu-se antes do raiar do dia, provocando um vazamento de 1,3 milhão de litros de óleo combustível nas águas da baía. A mancha se espalhou por 40km² e o episódio entrou para a história como um dos maiores acidentes ambientais ocorridos no Brasil. O vazamento afetou cerca de 12 mil famílias que viviam da pesca e de atividades ligadas ao pescado. Poucos anos depois, em 2018, ocorreria no litoral do Nordeste o maior derramanento de óleo da história do Brasil, cujos danos ainda hoje não foram reparados.

8. Entre 2019 e 2020, a Petrobras foi responsável por 23 vazamentos de óleo e derivados durante suas atividades, segundo levantamento do Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (Ilaese) para o Observatório Social da Petrobrás (OSP). Nesse período, foram derramados cerca de 4 mil barris de petróleo, totalizando 631,8 metros cúbicos do insumo. As informações constam no relatório anual de sustentabilidade da estatal.

9. O argumento de que o recurso vindo da exploração desse combustível financiará a urgente transição energética tem se mostrado fajuto, já que apenas 0,16% da renda nacional do petróleo foi direcionada à agenda ambiental e climática em 2024, segundo estudo do INESC.

10. De acordo com o mesmo estudo, apenas 1% da renda foi direcionada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação via recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Agrava o quadro o fato de que essa pequena parcela é, em sua quase totalidade, utilizada para financiar o “CT – Petróleo”, em detrimento de centros que têm atribuição de pensar inovações tecnológicas orientadas à transição energética e a uma economia livre de petróleo.

11. O Fundo Social, que destina 50% dos royalties da exploração do pré-sal para a educação básica, ainda está longe de ser o trampolim para o salto de qualidade no ensino brasileiro. Em 2015, apenas 10% do montante orçado foi pago até a metade do ano. Ao longo de 2014, apenas 30% foram usados. As projeções apontavam que mais de 84 bilhões de reais oriundos dessa atividade iriam para a educação até 2022, contudo, não foram encontrados dados consolidados sobre o histórico do repasse do Fundo Social para a educação brasileira. A notícia mais recente é a edição de um Medida Provisória do presidente Lula que amplia o escopo de possibilidades de uso do recurso, destinando-o a ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas e seus efeitos, além do enfrentamento das consequências sociais e econômicas de calamidades públicas, infraestrutura social e habitação de interesse social. Segue valendo a obrigação de destinar 50% para educação pública, mas um olhar rápido para a situação das universidades brasileiras me faz perguntar se o montante tem sido suficiente.

Diante disso, nossa tarefa é a de expor a falácia da ideologia fóssil, que tem nos levado à barbárie. Ao mesmo tempo, articular tal crítica com outra mais profunda: a crítica aos limites da própria ideia de desenvolvimento e progresso alinhada a um aumento de produção energética, exploração de trabalhadores e estímulo ao hiperconsumo imerso em uma “lógica absurda e irracional de expansão e acumulação infinitas”. Em outras palavras, como nos alerta Michael Löwy no artigo “A alternativa ecossocialista”, publicado em Tempo fechado: capitalismo e colapso ecológico, uma crítica radical à racionalidade capitalista e “seu produtivismo obcecado pelo lucro a qualquer preço”, que “são responsáveis por levar a humanidade à beira do abismo”, afinal, “a racionalidade da acumulação, da expansão e do ‘desenvolvimento’ capitalistas — especialmente em sua forma neoliberal contemporânea — é impulsionada por cálculos míopes e está em contradição intrínseca com a racionalidade ecológica e a proteção de longo prazo dos ciclos naturais.”2

O mundo real não é palco e a crise climática não espera a próxima cena. Ou desmontamos o cenário de mentira para propor a construção de um novo, ou assistiremos ao colapso se tornar parte da rotina.

Notas

Entre os maiores responsáveis, segundo os autores do estudo, estão a Saudi Aramco (US$ 2,05 trilhões), Gazprom (US$ 2 trilhões), Chevron (US$ 1,98 trilhão), ExxonMobil (US$ 1,91 trilhão) e BP (US$ 1,45 trilhão).
LÖWY, Michael. A alternativa ecossocialista. In: LUEDY, Laura (org.). Tempo Fechado: colapso ecológico e capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2025, p. 22.

Foz do Rio Amazonas no Oceano Atlântico. Lansat NASA

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