“Isso não é sobre dislike ou hate, é sobre proteger crianças” (Felca)
A denúncia que abalou a internet e a derrubada de perfis
Por Sérgio Botton Barcellos
A denúncia pública feita pelo youtuber Felca contra o influenciador Hytalo Santos a meu ver tornou-se um marco de relevância social, jurídica e midiática. Ontem em um vídeo de aproximadamente 49 minutos, intitulado “Adultização”, Felca afirmou que Hytalo estaria envolvido em um esquema de sexualização de adolescentes, usando-os em um tipo de “reality show” com comportamentos de conotação sexual, exposição de intimidade e consumo de álcool.
“Não é entretenimento, é exploração”, menciona Felca, ao apontar que a audiência majoritária dos conteúdos seria composta por homens adultos.
Felca com a força do seu engajamento e reconhecimento conseguiu uma repercussão considerada imediata, com milhões de visualizações (até o momento que escrevo esse texto mais de 12 milhões no youtube) e intensa reação nas redes sociais. Portais de notícias também destacaram que a narrativa de “consentimento dos pais” não isenta os responsáveis de suas obrigações de proteção. A denúncia também alertou sobre a monetização de menores nas redes, o que, segundo Felca, “é normalizado como conteúdo, mas é crime”.
Menos de 24 horas após a publicação do vídeo, perfis associados a Hytalo foram derrubados das principais plataformas como Instagram, Kway etc. A medida, considerada rápida para padrões de moderação digital, ocorreu após forte pressão de usuários na internet e veículos de imprensa.
Internautas classificaram o conteúdo denunciado como “nefasto” e “circo macabro”, denunciando a possibilidade de que fosse voltado a um público adulto com interesses ilícitos. O Ministério Público da Paraíba abriu investigação, ouvindo adolescentes, pais e responsáveis e avaliando a eventual omissão parental. A apuração inclui análise de todos os conteúdos por Hytalo, Youtuber paraibano, que contava com cerca de 17 milhões de seguidores.
E a lei? O que diz?
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbe a produção, divulgação, venda, aquisição ou armazenamento de qualquer registro com cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo crianças ou adolescentes, com penas de reclusão agravadas pela Lei 11.829/2008.
O ECA também tipifica o “grooming” digital — aliciamento, assédio ou constrangimento por qualquer meio de comunicação para fins sexuais. Em 2024, a Lei 14.811 instituiu a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e alterou o status de tais condutas a crime hediondo.
A Lei 13.431/2017 garante a escuta especializada e o depoimento especial de vítimas, evitando a revitimização durante o processo.
E pela lente da sociologia como é possível analisar essa situação?
Apesar do tema “estar quente” e não permitir uma análise sociológica mais acurada, é possível ensaiar e já identificar que o cenário social é preocupante. A SaferNet Brasil informou que, em 2024, o país ficou entre os cinco que mais colaboraram com denúncias internacionais de abuso sexual infantil na internet, com dezenas de milhares de links removidos e encaminhados para investigação.
A Agência Brasil registrou recorde de queixas em 2023 e novo aumento em 2024. Operações de grande escala resultaram em centenas de prisões e resgates de vítimas.
Vejamos alguns dados:
- Segundo o UNICEF, cinco crianças são vítimas de pedofilia virtual por dia no Brasil.
- 80% das vítimas de pornografia infantil online são meninas de até 10 anos.
- Em 2024, o Brasil ficou entre os cinco países que mais colaboraram com denúncias internacionais sobre o tema.
Na sociologia, campo do conhecimento em que atuo, inclusive no tema da juventude e das gerações há alguns anos, o conceito de adultização remete ao processo pelo qual crianças e adolescentes passam a ser tratados, representados e avaliados em determinados segmentos da sociedade como se fossem adultos, sobretudo no campo estético e comportamental. Isso implica a incorporação precoce de códigos de consumo, sexualidade e sociabilidade típicos da vida adulta compartilhados em uma determinada sociedade, desconsiderando a condição de desenvolvimento e a necessidade de proteção específica. Desde Philippe Ariès em seu clássico “História Social da Criança e da Família”, que traz uma análise histórica sobre as fases da vida e a construção da ideia de infância, e atualmente há autores como Neil Postman (em O Desaparecimento da Infância), já alertavam para a erosão das fronteiras entre o mundo adulto e o infantil na cultura midiática.
Esse fenômeno é agravado por uma lógica de mercado digital e financeira que recompensa a “novidade” e a “transgressão”, tornando a exposição de corpos e comportamentos de crianças uma mercadoria cultural, com valor mensurável em curtidas, seguidores e monetização.
Os estudos em sociologia da comunicação digital demonstram que plataformas operam por uma economia da atenção: conteúdos que geram engajamento são impulsionados, independentemente dos impactos sociais. Estudos de Shoshana Zuboff sobre capitalismo de vigilância trazem à tona como dados e interações são insumos para a maximização de lucros, o que pode levar a uma amplificação algorítmica de conteúdos sensíveis ou prejudiciais a vida das pessoas e a sociedade. Sérgio Amadeu, pesquisador brasileiro renomado no tema, explica em artigo que
“Grande parte das interações humanas no mundo — e no Brasil — ocorre com a mediação dessas plataformas, as chamadas redes sociais, administradas por algoritmos opacos, sem transparência ou auditoria por instituições democráticas. O poder dessas plataformas é tão grande que, ao reduzir a visibilidade de conteúdos de certos grupos políticos, podem desequilibrar completamente a formação de opinião”.
Do ponto de vista das teorias feministas, a sexualização precoce de meninas é funcional a estruturas machistas e patriarcais que historicamente mercantilizam o corpo feminino. Por exemplo, Silvia Federici e Heleieth Saffioti nos trazem que essa lógica reforça a desigualdade de gênero e naturaliza formas de dominação.
Bom, teria vários estudos, conceitos e autores(as) para trazer sobre o tema, mas tentando explicar essa questão, para esse texto de publicação em redes sociais, de uma forma acessível digamos, a exploração sexual de pessoas se insere nesse circuito, pois quanto mais engajamento, mais visibilidade, o que aumenta o potencial de lucro e de reprodução do ecossistema algorítmico em questão, no caso é o abuso e exploração de adolescentes.
Para compreender esse ciclo de abusos e crimes relacionados à exposição de crianças e adolescentes nas redes sociais precisa-se considerar o sistema econômico capitalista, midiático e jurídico vigente que permite que condutas assim se reproduzam, sobretudo em um Brasil extremamente desigual e onde as Big Techs atuam para não serem regulamentadas de forma adequada, devida e soberana. A noção de controle social difuso vigente sugere que famílias, escolas, plataformas e Estado compartilham responsabilidade na prevenção. Só que as falhas nesses níveis e as subsequentes tentativas de desregulamentação e de não regulamentação das Big Techs, apoiados pela extrema direita no Brasil, abrem espaço para que essa exploração ocorra.
O caso em debate não pode ser lido apenas como um episódio individual de desvio moral ou criminal de um youtuber. Ele é sintoma de um ecossistema digital que combina:
- Fragilidade de políticas de Estado para proteção online;
- Incentivos econômicos das Big Techs à exposição extrema;
- Busca da naturalização da adultização de crianças por parte de quem se beneficia disso;
- Desigualdades de gênero e poder.
Nessa perspectiva, a denúncia do Felca ganha importância não apenas por expor um caso, mas por evidenciar um padrão estrutural que se repete nas redes e na atual cultura de uso e consumo virtual nessa interface entre o online e o offline. Com o tempo e os desdobramentos dessa situação diante dessa denúncia caberá uma análise sistemática e mais aprofundada da situação.
A resposta de Felca e o impacto público
Após a repercussão, Felca foi alvo de falsas acusações de pedofilia nas redes. Ele processou centenas de perfis por difamação e propôs acordos judiciais que redirecionam as penalidades para doações a instituições de combate à violência contra crianças e adolescentes.
Analisando até o momento a situação, mais uma vez destaca-se a importância das denúncias serem feitas, que vai além do caso específico, a partir de três estratégias centrais: a amplificação jornalística que transformou um episódio individual em debate sobre um problema estrutural de abuso a crianças e adolescentes; a resposta pouco convencional e rápida de plataformas (ainda bem), com intensificação de denúncias formais e colaboração para derrubada de conteúdo; e a parte jurídico-institucional com a realização de denúncia formalizada às instituições de Estado competentes.
Todo apoio e solidariedade à denúncia do Felca e à proteção das crianças e adolescentes!
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O Disque 100 segue como o principal canal de denúncia a casos relacionados a abuso e exploração de crianças e adolescentes.
