No Evangelho de Lc 14,1.7-14 estão postas condições e orientações para sentar à mesa do Reino divino, não apenas para participar da festa em igualdade de condições com todas as pessoas comensais, mas como tecer relações humanas e sociais que construam uma sociedade desierarquizada, com igualdade de condições, com respeito à dignidade de todos e todas.
Jesus de Nazaré atento e perspicaz diante de tudo o que acontece vai lendo sinais dos tempos e dos lugares, e retirando lições de vida que nos apontam o rumo a seguir para de fato sermos fieis ao projeto do reino divino, que quer vida e liberdade em abundância para todos/as. Um acontecimento, aparentemente do cotidiano, como a refeição em dia de sábado na casa de um dos chefes dos fariseus (Lc 14,1), serve para que Jesus mostre as condições para sentar-se à mesa do Reino divino. Este versículo se presta bem para mostrar a hipocrisia da sociedade burguesa: uma pessoa influente e de posses (chefe dos fariseus), com seus convidados selecionados (amigos, irmãos, parentes e vizinhos ricos, cf. Lc 14,12), celebra o dia de sábado, data que, no projeto de Deus, deveria ser momento de celebrar a vida que Deus quer para todos e todas, e não simplesmente para as pessoas privilegiadas.
No Evangelho de Lucas os fariseus são chamados de “amigos do dinheiro” (Lc 16,14) e são os que mais defendem o sistema desigual das cidades, fundado na concentração de bens e propriedade privada. Relacionam-se entre eles, e jamais convidam à mesa um pobre ou pessoa com alguma deficiência, pois são pessoas consideradas impuras. Com esse sistema de relações vão tornando a sociedade cada vez mais desigual e discriminadora. Hierarquizada pelo “mérito, honra e privilégios”, essa sociedade observa Jesus (“eles o observavam” – Lc 14,1), para ver o que ele tem a dizer.
O tema da mesa (comensalidade) é um dos mais caros ao Evangelho de Lucas. Jesus come com publicanos (Lc 5,29-32); à mesa, na casa de um fariseu, é ungido pela mulher pecadora (Lc 7,36-50); também na casa de um fariseu desmascara a hipocrisia e o legalismo de quem o acolhia (Lc 11,37-54); janta na casa de Zaqueu e o ensina a repartir; faz-se ele mesmo pão repartido (Lc 22,14-2); e se dá a conhecer, em Emaús, ao redor da mesa ao partir o pão (Lc 24,13-35). Ao todo, por doze vezes Jesus se senta à mesa, segundo o Evangelho de Lucas. E ainda convida a quem permanecer fiel a sentar-se na mesa de seu Reino (Lc 22,28-30).
Em Lc 14,7-11 narra-se o que Jesus tem a dizer à sociedade hierarquizada, sociedade que reproduz a desigualdade. A refeição na casa do chefe dos fariseus é marcada pela competição social: “Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares” (Lc 14,7a). Mais adiante, Jesus dá esta advertência aos discípulos: “Tenham cuidado com os doutores da Lei. Eles fazem questão de andar com roupas compridas, e gostam de ser cumprimentados nas praças públicas. Gostam dos primeiros lugares nas sinagogas e dos postos de honra nos banquetes. No entanto, exploram as viúvas e roubam suas casas e, para disfarçar, fazem longas orações” (Lc 20,46-47a).
O que Jesus tem a dizer a essa sociedade parecida com a sociedade capitalista, que hierarquiza as pessoas? Uma parábola e nada mais. E, por ser parábola, ela traz um sentido oculto, que só os comprometidos com o Reino de Deus conseguem descobrir: “Se alguém convida você para uma festa de casamento, não ocupe o primeiro lugar. Pode ser que tenha sido convidado alguém mais importante do que você…” (Lc 14,8-10). À primeira vista, uma simples advertência para as etiquetas de grandes encontros e festas de quem domina na sociedade. E, talvez, um momento privilegiado para, por tática esperta, galgar alguns degraus na posição social: “Vou sentar nos últimos lugares para que o dono da festa, diante de todos, me promova aos primeiros lugares…” (cf. Lc 14,10). Não é isso que Jesus quer ensinar.
Inocentemente poderíamos perguntar: No meio dessa sociedade ambiciosa pelos primeiros lugares, onde ter-se-ia sentado Jesus? E aqui começa a aparecer o sentido oculto da parábola. Mais adiante, Jesus irá dizer: “Afinal, quem é o maior: aquele que está sentado à mesa, ou aquele que está servindo? Não é aquele que está sentado à mesa? Eu, porém, estou no meio de vocês como aquele que está servindo” (Lc 22,27). Com quem, então, se identificou Jesus nessa refeição com integrantes da sociedade opressora? Certamente com os esquecidos, os que não foram convidados, ou com aqueles que não aparecem, isto é, os que estão servindo à mesa. Prepararam a festa, sem dela participar…
A moral da parábola é esta: “Quem se eleva, será humilhado, e quem se humilha será elevado” (Lc 14,11). Esta posição foi a assumida pelo próprio Deus, que optou pelos humilhados e escravizados (Ex 3,7-10). O próprio Evangelho de Lucas, em outra passagem, nos ajuda a entender a questão: “Ele realiza proezas com seu braço: dispersa os soberbos de coração, derruba do trono os poderosos e eleva os humildes; aos famintos enche de bens, e despede os ricos de mãos vazias” (Lc 1,51-53). Nesse sentido, pode-se ler a parábola do fariseu e do publicano: “Eu declaro a vocês: este último voltou para casa justificado, o outro não” (Lc 18,9-14).
Em Lc 14,12-14 nos é apresentado o projeto do Reino divino: casa e banquete dos marginalizados. Jesus contou uma parábola à sociedade exploradora, e essa parábola apontava para o sentido oculto da mesma. Agora, ele se dirige às lideranças (chefe dos fariseus), tornando claro o significado oculto: “Quando você for dar um almoço ou um jantar, não convide os amigos, nem os irmãos, nem os parentes e nem os vizinhos ricos; porque estes irão também convidar você, e isto será a sua recompensa. Pelo contrário, quando você der uma festa, convide os pobres, os aleijados, os mancos, os cegos… Então você será feliz!” (Lc 14,12b-14a).
Vi este evangelho acontecer em Belo Horizonte no dia em que um aniversariante celebrou sua festa de aniversário oferecendo um almoço comunitário aos irmãos em situação de rua que são violentados ininterruptamente pela sociedade do mérito e por empresários políticos como o desgovernador de Minas Gerais, Romeu Zema, que disse recentemente que “as pessoas em situação de rua precisam ser guinchadas como carro quebrado e estão formando chiqueiros humanos nas cidades”. Fiquemos do lado das pessoas que têm empatia por todo e qualquer ser humano e por todos os seres vivos da Criação, e nosso repúdio veemente aos cegados que reproduzem estigmas que apunhalam as pessoas e fomentam violência social.
O conselho de Jesus é para as lideranças entrarem na dinâmica do Reino divino. No sistema econômico das aldeias do campo – oposto ao das cidades – vigorava a lei da partilha, da troca, da ajuda mútua, de modo que ninguém passasse fome. Aqui acontece o contrário. A regra é concentrar e relacionar-se somente com quem pode retribuir. Aí o Reino não planta raízes. Jesus quer dizer o seguinte: não dar para receber em troca, pois o Reino divino não é comércio ou troca de favores. O Reino é dado gratuitamente e só quem cria relações de solidariedade e gratuidade com os excluídos é que poderá sentir-se coautor de uma sociedade desierarquizada. De fato, aleijados, mancos e cegos eram discriminados por sua condição física, postos à margem pela sociedade imperial e pela religião fundamentalista, tidos como “mutilados” por Deus. Em vista disso, podia-se celebrar tranquilamente o sábado sem pensar neles. Mas o Reino de Deus inverteu essa situação, colocando os pobres e lascados da vida, para com eles celebrar a festa, em um clima de solidariedade e gratuidade. E tudo isso por causa de Jesus, que está no meio de nós como aquele que serve.
Enfim, participa do reino divino quem subverte hierarquias e domínio, e tece relações humanas e sociais que garantem a igualdade de dignidade de todas as pessoas, sem exceção. Enquanto alguns para tentar justificar seus privilégios defendem a meritocracia, a retribuição, que geram exclusão, Jesus orienta para a humanização da vida, para tecermos relações humanas e sociais de justiça, respeito à dignidade humana e de toda a biodiversidade, solidariedade e fraternidade.
29/08/25
Obs.: A videorreportagem no link, abaixo, versa sobre o assunto tratado, acima.
SUBVERSÃO DA HONRA NA MESA DO REINO (Lc 14,1.7-14). EVANG P/ ALÉM DE TEMPLOS: Marcelo/Odja/Gilvander
