“Primeiro mataremos todos os subversivos, logo mataremos os seus colaboradores, depois os seus simpatizantes, em seguida aqueles que permanecem indiferentes e, finalmente, mataremos os tímidos.” (Ibérico Saint Jean)
A frase que serve de epígrafe a este texto é uma declaração do general argentino Ibérico Saint Jean, governador da província de Buenos Aires durante a ditadura militar naquele país, publicada no diário Internacional Herald Tribune (Paris), em 26 de julho de 1977. Saint Jean faleceu em outubro de 2012, tinha 90 anos, e estava esperando julgamento por crimes de lesa humanidade, mas não chegou a ser condenado. Morreu impune.
1. O julgamento de Bolsonaro precipitou um momento dramático da conjuntura por cinco razões: (a) porque Trump justificou o tarifaço de 50% sobre as exportações brasileiras, entre outras razões esdrúxulas, como represália à provável condenação de Bolsonaro; (b) porque o bolsonarismo decidiu apoiar essa sanção econômica sem precedentes, e iniciou uma contra-ofensiva que passou pela tomada de controle do Congresso Nacional — a ocupação física das mesas da Câmara dos Deputados e Senado — e aposta na convocação de mobilizações nas ruas para o 7 de setembro; (c) porque embora exista uma maioria na opinião pública que apoia a condenação dos golpistas, Bolsonaro mantém o apoio de 40% da população, que considera sua prisão injusta; (d) porque tem avançado uma articulação da extrema direita com o centrão, patrocinada por Artur Lira e com a cumplicidade do atual presidente da Câmara, Hugo Motta, para a votação emergencial de um projeto de anistia; (e) porque Tarcísio de Freitas, associado a Romeu Zema e Cláudio Castro, assumiu a liderança da campanha pela anistia geral e irrestrita para os golpistas, inclusive dos já condenados pela semi-insurreição de 8 de janeiro de 2023, e defendeu o indulto a Bolsonaro, se eleito, por antecipação.
2. O momento é dramático, não porque haja incerteza sobre o desenlace do julgamento, mas porque estamos diante de um conflito em três frentes: entre a ultra direita que arrasta o centrão no Congresso contra o STF, entre a força social de choque do bolsonarismo nas ruas contra o Supremo, e entre a pressão de Trump contra o governo Lula. Apesar deste contexto, permanece mais do que provável a condenação do núcleo central golpista, mas incerto qual será o tamanho das penas, e a dosimetria tem importância. Mas se enganam aqueles que idealizam uma “pacificação” política. Não vai ocorrer reconciliação porque o Brasil está e vai continuar dividido; porque o movimento da extrema direita tem liderança neofascista, apoio de uma fração poderosa da burguesia, sustentação nas camadas mais reacionárias da classe média, audiência em estratos populares, implantação nas Forças Armadas e Polícias, impacto nas redes sociais e, não fosse o bastante, aliados como Trump e Milei.
3. Não haverá interrupção de hostilidades, nem com a anistia, nem com a prisão de Bolsonaro. O julgamento é um momento na disputa pelo poder, que vai prosseguir ininterrupta até às eleições de 2026, e adiante. O maior problema é que o governo Lula abraçou uma estratégia de governabilidade a “frio”. Nem agora, na iminência de desfecho do julgamento e com o desfio de ir às ruas no 7 de setembro, Lula considera a possibilidade de um momento “Petro” ou “Cláudia Sheinbaum”, abraçando o Sem Anistia. Mantém como eixo a construção de uma Frente Ampla para garantir maioria no Congresso Nacional. A saída do PP e dos Republicanos do ministério não deve mudar a escolha estratégica do Planalto. Essa aposta repousa na aliança com Alckmin, Simone Tebet e manobras para neutralizar o PSD de Gilberto Kassab, estratégia que tem muitas consequências. Uma das mais graves foi ter deixado, exclusivamente, na alçada do STF o destino do bolsonarismo.
4. Nos últimos cem anos foram dez quarteladas, sublevações e levantamentos, entre os que triunfaram e os derrotados. Uma articulação da classe dominante, unindo gaúchos, mineiros e parte do Nordeste, foi ao assalto do poder, apoiando-se nas Forças Armadas em 1930 para derrubar Washington Luís e a República Velha; em 1932, a fração paulista foi até a guerra civil para tentar derrubar Getúlio; em 1937, Vargas foi até o autogolpe e impôs uma ditadura semifascista por oito anos; em 1945 uma conspiração militar derrubou o governo de Getúlio; em 1955, uma conspiração para impedir a posse de Juscelino Kubitschek foi derrotada; em 1964, triunfou a contrarrevolução que abriu o caminho para vinte anos de ditadura militar; em 1969 ocorreu um golpe dentro do golpe que transformou o regime bonapartista autoritário em regime fascista; em 1977 o levante liderado por Silvio Frota foi desarticulado; e mais recentemente tivemos o golpe jurídico-parlamentar que derrubou Dilma Rousseff e, em 2022/2023, a operação bolsonarista.
5. A ilusão de que a classe dominante brasileira tem algum tipo de compromisso com um regime com liberdades democráticas não tem fundamento e é muito perigosa. Nunca foi assim. O sentido histórico do julgamento é enorme. O que define a dimensão imensa do seu significado é que nunca foram a julgamento no Brasil as lideranças de tentativas de golpe de Estado. Sempre prevaleceu a impunidade. Durante décadas, em escala mundial, depois da guerra, o fascismo foi uma corrente, politicamente, residual, em função da derrota de Mussolini e Hitler. Mas a marginalidade da extrema direita era desigual de país para país.
6. No Brasil, a extrema direita sempre foi mais influente que na Argentina, por exemplo. Foi, tristemente, assim, porque a ditadura acabou sem que o governo Figueiredo tivesse sido derrubado. E, também, em função da transição pelo “alto” negociada pelo MDB de Tancredo Neves, que deixou intacto o aparelho militar-policial de vinte anos da ditadura. Esse desfecho deu sobrevida ao “malufismo”, herdeiro do partido da ditadura, por uma década. Mas o fascismo do século XXI é uma corrente com um horroroso peso de massas no Brasil, e crescente influência em grande parte do mundo. O bolsonarismo quer voltar ao poder.
7. Tem momentos em que a “mão não pode tremer”. O tema mais central da conjuntura brasileira é o destino de Bolsonaro. Não deveria ser muito polêmico, se considerarmos tudo o que aconteceu durante os quatro anos de mandato, mas é. Prevalece uma desconcertante subestimação do perigo. A prisão de Bolsonaro será uma derrota terrível para a corrente neofascista. Não enterra a influência da extrema direita, mas a diminui. O resultado é todavia controverso. Mesmo em círculos da esquerda, alguns argumentaram até contra a condenação de inelegibilidade de Bolsonaro em 2023. A ideia de que a prisão de Bolsonaro não o enfraqueceria, ao contrário, o fortaleceria, porque favoreceria sua “martirização”, é um cálculo ingênuo. Bolsonaro preso será uma derrota irreparável para toda a extrema direita.
8. Já a extravagante ideia de que o maior problema, no Brasil de 2025, seria o excesso de poder dos Tribunais Superiores, e não a impunidade da corrente neofascista, é insustentável. A subestimação do perigo representado pelo neofascismo é imperdoável, como ficou claro na Argentina com a explosão do vulcão Milei, depois de quatro anos de governo fracassado do peronismo de Alberto Fernandez. O argumento de que não devemos apoiar a ofensiva da Justiça contra Bolsonaro porque se estabeleceria um precedente de “empoderamento” para, no futuro, legitimar a repressão contra a esquerda é de uma miopia política incorrigível. Quem pensa assim perdeu a bússola. O lugar de toda a esquerda, dos mais moderados aos mais radicais, deveria ser na primeira linha da luta pela repressão impiedosa contra Bolsonaro e a corrente neofascista.
9. A extrema direita, embora heterogênea, ainda é liderada pela corrente neofascista que apoiou as ameaças golpistas durante os quatro anos de mandato, e preserva posições políticas centrais no Estado brasileiro, a começar pelos três governos estaduais de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, além de uma bancada estimada em, pelo menos, 140 deputados federais eleitos, centenas de estaduais e, em escala nacional, alguns milhares de prefeitos, além de uma impunidade de agitação de campanhas de desinformação nas redes sociais.
10. O perigo é real, também, porque nos setores mais militantes vem se acumulando uma justa frustração com os limites do governo Lula: o arcabouço fiscal é um teto de gastos “com desconto”. A tentação de lutar contra tudo que está errado, ao mesmo tempo, não é realista, mas é grande. Há, também, reais dificuldades de mobilização social, seja qual for a reivindicação. Muitos fatores se combinam como explicação desta debilidade. Em primeiro lugar, a estreita mas histórica vitória eleitoral de Lula mudou a relação política de forças, porque a conquista do governo federal significa a ocupação da posição institucional mais poderosa dentro do regime, e prevalecem expectativas de que as “entregas” seriam o bastante para vencer nas eleições de 2026; mas o mais importante é que ainda não se inverteu a relação social de forças, e a confiança na possibilidade de vitória nas lutas é pequena.
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Valerio Arcary é doutor em história pela USP, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica e autor de As esquinas perigosas da História (São Paulo, Xamã, 2004). É um dos autores de István Mészáros e os desafios do tempo histórico (Boitempo, 2011), organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile e de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo, 2022).
2º Ato Ele Não, 06/10/2018. Foto: Romerito Pontes
