Cinco lições de um domingo grandioso. Por Valerio Arcary

Além ou aquém, sempre vejas com quem.”
— provérbio popular português

No Blog da Boitempo

1. As mobilizações de rua do último domingo, 21 de setembro de 2025, foram o maior protesto nacional desde a eleição de Lula em 2022, com centenas de milhares de pessoas nas ruas, se considerarmos todas as capitais, sem esquecer as cidades médias, e com surpreendente interiorização. Foi admirável e maravilhoso, também, que, pela primeira vez a esquerda foi capaz de nivelar, e até superar em algumas cidades, a dimensão dos atos bolsonaristas. Concentrações de rua têm sido, historicamente, o método de luta mais poderoso para colocar em movimento grandes massas em torno de bandeiras políticas nas últimas décadas. (As greves são muito importantes, mas mesmo nas três maiores greves gerais, ocorridas em 1987, 1989 e 2017, a escala foi outra.) Foi assim nas “Diretas já” e na campanha pelo Fora Collor; no início das jornadas de junho, rechaçando a repressão às passeatas contra o aumento das passagens; quando do Ele Não e durante o Tsunami da Educação, ainda que o tamanho das manifestações tenha variado, algumas superando os milhões. Três elementos em comum podem ser identificados:

(a) Um programa de reivindicações democráticas: “Abaixo a ditadura” e eleições presidenciais, em 1984; o fim do governo corrupto, em 1992; a fúria contra a repressão e a defesa de educação e saúde de qualidade, diante da ostentação das obras em estádios para a Copa, em 2013; o repúdio ao neofascismo de Bolsonaro, em 2018; e a indignação diante do obscurantismo obtuso nas universidades, em 2019.

(b) Foram mobilizações democráticas reativas aos abusos de poder, à impunidade da corrupção e às agressões da violência repressiva.

(c) A maturidade da percepção da debilidade dos inimigos, a expectativa ou confiança na iminência da vitória, em função do caráter unitário das convocações e da adesão de referências do mundo da arte, cultura, esporte e ciência, além das lideranças políticas.

Mas a ida às ruas em 21 de setembro teve um diferencial: foi um chamado de emergência da noite de quarta-feira, dia 17, para o domingo — e foi um sucesso espetacular.

2. A questão é interpretar as razões desta vitória, depois de muito tempo em que a esquerda só conseguia realizar mobilizações na escala de uma vanguarda ativista ampla. Afinal, por quê? Três razões parecem principais:

(a) porque as duas votações ocorridas na semana passada na Câmara dos Deputados, a da PEC da Blindagem e a da urgência do projeto de lei de anistia, unindo uma maioria construída pela associação do Centrão e do bolsonarismo foram uma provocação, e acabaram incendiando a consciência de milhões, politicamente mais ativos, que expressam uma maioria social exasperada contra a extrema direita;

(b) porque a vitória da condenação de Bolsonaro no julgamento do núcleo central da conspiração golpista levantou o moral da base social da esquerda;

(c) porque existiu um núcleo de direção na esquerda radical que teve a ousadia de buscar apoio na mobilização de massas — Boulos, o PSOL e a Frente Povo Sem Medo —, ao qual se uniram o PT (fragilizado pela votação de um setor da bancada, favorável à PEC da Blindagem) e a Frente Brasil Popular, consolidando um chamado unitário. Mas, não menos importante, também porque ocorreu uma explosão espontânea de convocação em escala de dezenas de milhares de ativistas nas redes sociais e, especialmente, pelo papel do vídeo gravado por Caetano Veloso, que fez história.

3. Entre todos esses fatores, merece atenção a evidência de que as redes sociais criaram uma nova realidade na luta política ao oferecerem protagonismo a muitos milhares de sujeitos que não estão organizados em partidos, movimentos nem sequer núcleos políticos. Essas pessoas estão engajadas em uma militância digital que não é o bastante para substituir as organizações, mas que demonstrou uma potência impressionante. O alcance multiplicador de postagens que são acessadas, vertiginosamente, em tempo real tem um efeito de agitação política de massas e até de organização de mobilizações que não pode ser comparado com a divulgação de panfletos ou colagem de cartazes, de décadas atrás. Os artistas são, também, grandes amplificadores, porque a sua presença oferece legitimidade e agrega um elemento lúdico aos atos. Mas não explicam tudo.

Grandes manifestações exigem a compreensão das bandeiras que mobilizam, dos sujeitos políticos que as convocam, mas não se pode desconhecer quem foi o sujeito social que saiu às ruas. Três notas sobre a “explosão” de domingo, apoiadas pela experiência:

(a) o grito de guerra que surgia a todo momento foi o “Sem Anistia”, o que confirma que o sentido da manifestação foi, incontestavelmente, antifascista;

(b) estiveram nas ruas muitas gerações, desde a juventude estudantil com menos de 24 anos, adultos entre os 24 e 40, a meia-idade (dos 40 aos 55), os veteranos que têm entre 55 e 70, e os idosos com 70+, além de uma equilibrada e mista participação entre homens e mulheres, uma forte presença negra e LGBT, o que foi extraordinário, e contrasta com a composição masculina, branca e de classe média acomodada das manifestações bolsonaristas;

(c) ainda não saíram às ruas as amplas massas populares, a imensa maioria pobre oprimida que sobrevive com até dois salários mínimos, e prevaleceram nas mobilizações assalariados das camadas médias com níveis mais elevados de instrução.

4. Está em curso na mídia comercial uma interpretação política ou operação ideológica que busca explicar a impressionante dimensão das mobilizações somente pelo apelo da bandeira contra a impunidade da corrupção dos deputados. É verdade que, ao aprovarem uma lei que exige uma votação secreta na Câmara dos Deputados para que seus membros possam ser investigados, despertaram a fúria nas camadas médias, mas essa leitura é enviesada. A luta contra a corrupção é uma luta democrática justa. Não é verdade que seja uma reivindicação, estritamente, liberal, muito menos um programa da direita ou da extrema direita. Trata-se de uma bandeira democrática. Foi manipulada, historicamente, pelas forças reacionárias contra a esquerda, incontáveis vezes. Mas isso não diminui a necessidade de defendê-la, especialmente quando diante de uma votação de autoproteção para impedir a investigação do escândalo das “emendas Pix”. E não foi somente contra a corrupção e a PEC da Blindagem que as pessoas foram às ruas: foi pelo “Sem Anistia” e, também, pela isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$5 mil, pelo fim da escala 6×1, pela taxação dos super-ricos.

5. Vai ser preciso prosseguir na mobilização, que ninguém se engane. Embora a PEC da Blindagem não tenha perspectiva de aprovação no Senado, e mesmo que o projeto de Anistia a ser apresentado seja desidratado como redução de penas, o perigo permanece. Sem a vigilância das ruas e a ameaça de novas manifestações, é imprevisível o que pode acontecer no Congresso Nacional. A esquerda conseguiu ter iniciativa e incidir sobre a relação política de forças de forma qualitativa, no imediato. Mas ainda não é o bastante para inverter a relação social de forças, uma variável em outro grau de profundidade, que permanece desfavorável, infelizmente. O que está em disputa é o desenlace da luta político-eleitoral em 2026. A maioria que se forjou em Brasília foi a antessala de uma estratégia que passa por uma candidatura unificada do Centrão e do bolsonarismo contra a reeleição de Lula. O governo preferiu manter uma distância das mobilizações de domingo, transferindo para os movimentos a responsabilidade de dizer basta, e para o Judiciário e STF, o papel de definir as inconstitucionalidades votadas no Congresso, insistindo na linha de governabilidade a “frio”. Não será o bastante diante dos riscos que nos cercam com a interferência de Trump, que disputa a “quente” o destino do que virá.

Valerio Arcary é doutor em história pela USP, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica e autor de As esquinas perigosas da História (São Paulo, Xamã, 2004). É um dos autores de István Mészáros e os desafios do tempo histórico (Boitempo, 2011), organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile e de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo, 2022).

Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil

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