Dos rolezinhos à orla da praia, o incômodo branco com corpos que “não pertencem”. Por Jessica Santos

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Dezenas de jovens na praia. É isso que a imagem mostra. Mas eles não estão se divertindo como se esperaria. Estão todos com as mãos na cabeça, enfileirados ao longo do calçadão da praia. Parece alguma prova daquela série coreana Round 6, mas é a vida real. Esses rapazes estão tomando uma geral, acusados de um arrastão que sequer foi confirmado. Em sua esmagadora maioria, são negros.

O público que está ali grava a ação como se fosse uma atração turística e não há quem reaja. Outras pessoas caminham, olham para aqueles jovens e seguem a vida como se não fosse uma imagem, no mínimo, escandalosa. Uma viatura da PM transita como vigilantes, enquanto a GCM de Santos cumpre um suposto papel. Aos jovens que estão com bicicletas, é pedido as notas fiscais de cada uma delas. Ao não apresentarem esse documento, eles têm seu meio de locomoção apreendido. Porque é óbvio que todo mundo anda por aí com uma pasta de todas as notas fiscais dos produtos que possui (contém ironia).

Essas “boas-vindas” das forças de segurança revelam que não existe como aqueles jovens pertencerem à tão branca orla de Santos. Assim como, num passado não tão distante, os jovens que participavam dos “rolezinhos” nos shoppings na região metropolitana de São Paulo ocuparam um espaço que não lhes pertencia.

Lembro de quando parte dos bons cidadãos de Higienópolis protestaram contra a instalação de metrô nas imediações. Uma moradora disse que uma estação traria “gente diferenciada” para a nobre região que tem higiene no nome. Os diferenciados? Para esta senhora, seriam mendigos e drogados. Ou, talvez, trabalhadores periféricos, em sua maioria negros, que dependem de transporte público.

A lei não escrita é o direito à cidade para quem goza do privilégio branco. A cidade é hostil a todo corpo que não esteja nesse padrão: branco, abastado, estudado, morador de bairros nobres, o tipo de gente que nunca deve ter pisado na Estação da Sé. E, se o fizer, provavelmente ficaria com a pele coberta de brotoejas diante tanta gente “diferenciada” ocupando o local.

O transporte público é um sintoma disso, mas trago a perspectiva aqui da segurança pública. Já vimos a história: o mesmo policial militar que pode ser xingado pelo patrão em Alphaville é quem vai barbarizar em Paraisópolis. Toda vez que a “gente diferenciada” ocupa espaços que não são seus, a reação é violenta e quase sempre histérica — assim como o mito do negro estuprador causou a morte de diversos rapazes no sul dos Estados Unidos no século passado.

Como a polícia enxerga como humanos apenas os moradores brancos de lugares como Higienópolis, Alphaville, Pinheiros, Jardins e parte da orla de Santos, entre outros bairros nobres espalhados pelo país, o resto é feito para humilhar e descartar, como algo que não presta nem para reciclar. E isso acontece mesmo com PMs e outros agentes que também pertencem às classes sociais que eles ajudam a manter no cabresto. A essas classes, são destinadas às periferias, as cozinhas, o não-acesso, o não-direito, a não-vida.

O que assistimos em Santos é a clara criminalização de não-vidas, uma velha herança que a branquitude, herdeira do escravagismo, e seus capitães do mato fardados reforçam diariamente, seja pedindo nota fiscal de uma bicicleta ou a manutenção do pacto narcísico da branquitude.

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