A forma como os sistemas agroalimentares vêm sendo tratados nos espaços multilaterais compromete o enfrentamento às mudanças climáticas
Arilson Favareto e Nadine Marques, Le Monde Diplomatique Brasil
A presidência brasileira da COP 30, que acontecerá em Belém, já traz uma novidade: pela primeira vez, os sistemas alimentares são mencionados como eixo prioritário da agenda climática. Não é um detalhe técnico. Existe nisso potencial para uma mudança capaz de transformar o debate global sobre o clima e a forma como produzimos e consumimos alimentos.
Até aqui a transição energética concentra as atenções. Não por acaso, aí se concentra a maior parte das emissões de gases estufa no plano global. Mas há um ponto cego. O sistema agroalimentar, abrangendo desde a produção agropecuária até o processamento, transporte, consumo e descarte dos alimentos, responde sozinho por cerca de um terço das emissões mundiais. No Brasil, esse número é ainda mais alarmante: 73,7% das emissões brutas do país vêm direta ou indiretamente da agropecuária.
Isso significa que, mesmo que o mundo começasse amanhã a abandonar os combustíveis fósseis, as emissões do setor agroalimentar seriam suficientes para impedir que a temperatura global fosse mantida abaixo de 1,5°C ou até para ameaçar a meta de 2°C, prevista no Acordo de Paris. Em outras palavras: sem mudar a forma como produzimos e consumimos alimentos, não haverá vitória diante da crise climática.
O desafio é que esse sistema não está apenas degradando o clima e os ecossistemas. Ele também compromete a saúde humana e gera custos sociais e financeiros gigantescos, ainda que invisíveis nas contas oficiais. Hoje, o modelo predominante se apoia em monoculturas vulneráveis, uso intensivo de agrotóxicos, criação animal apoiada em enorme uso de antibióticos, e dietas pobres em diversidade, ricas em ultraprocessados.
Negligenciar esse tema custa caro. Os resultados estão diluídos nas estatísticas de doenças crônicas e nos gastos do SUS, na perda de biodiversidade e na explosão de eventos climáticos extremos, no aumento dos custos e no estrangulamento das margens de lucro dos próprios produtores rurais. Tudo isso encarece a comida e aumenta o risco de desabastecimento.
É hora de virar a chave. Assim como o mundo passou a discutir a transição energética com a substituição de tecnologias fósseis, precisamos de uma transição agroalimentar com a substituição do modelo convencional de produção e consumo.
Isso não se resume a uma “agricultura mais verde”. Meio século atrás uma revolução técnica e institucional permitiu enorme salto de produtividade e a superação da escassez de alimentos. Agora é momento de iniciar outro ciclo, orientado por novo objetivo ético-normativo. É preciso superar a “tríplice monotonia” que marca o setor: monoculturas agrícolas, sistemas produtivos uniformes e dietas cada vez menos diversas.
Essa mudança já começou, mas ainda é tímida. A chamada agropecuária regenerativa vem ganhando espaço, mas não pode ficar restrita ao uso pontual de novas tecnologias no interior das fazendas. É preciso vincular essas novas técnicas com a gestão da paisagem – biodiversidade, recursos hídricos – da qual dependem a vida humana e a própria competitividade do setor.
O caminho passa pela diversificação da produção e do consumo, valorizando a sociobiodiversidade e garantindo acesso a alimentos saudáveis. Passa também por reduzir gradualmente a dependência de ultraprocessados e de práticas predatórias que continuam impulsionando o desmatamento.
Para isso será preciso redesenhar regulações, incentivos e sistemas de financiamento. E será fundamental criar mecanismos que assegurem a países e produtores mais vulneráveis o acesso a tecnologias e fundos de transição, para que a mudança não aprofunde desigualdades.
Como potência agroambiental e país anfitrião desta COP, estamos em posição única para liderar o debate internacional. Se a presidência brasileira se limitar a compromissos vagos, perderemos uma oportunidade histórica. Mas, se colocarmos a transição agroalimentar no centro da agenda, de maneira ambiciosa, o Brasil poderá ser lembrado como o país que ajudou a corrigir uma das maiores omissões do regime climático internacional.
Na Amazônia, onde floresta, agricultura e modos de vida se encontram em disputa, o tema se torna ainda mais urgente. Cabe a nós apontar o rumo: construir um sistema alimentar diverso, justo e sustentável é condição para qualquer futuro viável.
Arilson Favareto é sociólogo. Professor Titular da Cátedra Josué de Castro da USP; Nadine Marques é nutricionista. Pesquisadora Assistente da Cátedra Josué de Castro USP.
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