Carta Pública da Comissão Força de Axé de Maricá – CFAM

Primeira audiência pública contra intolerância religiosa: a não aceitação da liberdade religiosa, o racismo religioso e o não direito de ir e vir no espaço social

I – Preâmbulo: o evento e sua organização 

No dia 28 de agosto de 2025, a CFAM – Comissão Força do Axé de Maricá foi convidada a participar da Primeira Audiência Pública, programada pela Câmara dos Vereadores de Maricá, sobre intolerância religiosa, intitulada Diálogos de fé: políticas públicas no combate à intolerância religiosa, no auditório da Codemar – Companhia de Desenvolvimento de Maricá, em Araçatiba, realizada no horário das 14 às 18 horas. A organização e a convocação foram promovidas pela Vereadora Andrea Cunha, do Partido dos Trabalhadores (PT). A audiência contou com a participação de 114 cidadãos, distribuídos entre representantes de diferentes autoridades, lideranças religiosas, movimentos sociais e a população em geral. A audiência teve os objetivos de “debater questões relacionadas à liberdade de fé e à diversidade religiosa, combater o preconceito e a intolerância religiosa, através de ações concretas, propondo políticas públicas e garantindo a laicidade do Estado”.

O evento foi organizado em três etapas. O primeiro momento (Mesa 1) trouxe a saudação dos participantes das mesas aos ouvintes presentes, incluindo autoridades (parlamentares, representantes do governo municipal e respectivos secretários, diferentes lideranças religiosas e movimentos sociais) e participantes da plenária. O segundo momento (Mesa 2) foi a realização de mesas de debates, contando com temas que contemplassem a fala e/ou depoimentos sobre a liberdade religiosa e a diversidade, a laicidade do Estado, os depoimentos sobre intolerância religiosa. A CFAM, além das respectivas saudações, foi convocada para fazer sua fala, apresentando-se e explicitando para que foi criada (suas finalidades e ações) diante da intolerância religiosa, das invasões e da destruição de comunidades de terreiros, da luta contra o racismo cultural e religioso da população afro-brasileira. O terceiro momento (momento de debate e perguntas da plenária), de certa forma, foi prejudicado pelo adiantado da hora, dado que chegava o horário das 18 horas. Para fins da audiência em si (das 14 às 18 horas), tudo foi gravado. A partir do debate com a plenária, não houve mais gravação, sendo esta uma determinação dos trabalhos da Câmara de Vereadores, em face do adiantado da hora. A Vereadora Andrea Cunha deu a possibilidade da realização da plenária e de resposta da Mesa 2, sem, entretanto, ser realizada a gravação. No final do evento, algumas deliberações, que nesse texto não cabe apontar, a não ser a deliberação final e mais importante, que será a realização da Segunda Audiência Pública. Espera-se também que as organizadoras do evento apresentem a sistematização final, principalmente sobre as possíveis ações presentes nas diferentes falas, para que possam ser socializadas como resultado da Primeira Audiência Pública, tendo em vista que “foi um espaço para discussão e construção coletiva possível no momento, visando à transformação das falas em ações concretas contra a intolerância religiosa no país e em Maricá, diante dos ataques que vêm acontecendo às Casas de Axé, como também às instituições educativas”.

II – O que coube na fala da CFAM no segundo momento do evento: sobre o direito de ir e vir

Eu não quero ser tolerado como fui ontem, nem quero sofrer intolerância religiosa como foi hoje, antes de vir para cá. Eu quero ser respeitado e aceito, tendo o direito de ir e vir (Pai José Jagum – Secretário-Geral da CFAM, representante da Comissão na Mesa 2)

Não é novidade para ninguém que nosso país culturalmente é um país plural, com a presença de grande diversidade, especialmente religiosa e que, historicamente, pelas relações de poder, disputam os espaços de poder a hegemonia religiosa, que atenta contra a realização dos cultos, e a própria liberdade para propagação dos cultos. O que se percebe hoje é que são gerados a intolerância religiosa e o racismo religioso, que vêm atravessando historicamente nossa sociedade. A Constituição Federal garante o direito à liberdade de religião. Entretanto, em 2024, segundo o Ministério dos Direitos Humanos, a intolerância religiosa no Brasil aumentou 66,8%, sendo que a maioria acontece contra as religiões de matrizes africanas.

A intolerância é uma atitude ou ação de hostilidade, discriminação e preconceito diante de pessoa ou grupo de pessoas que possuem credos diferentes, negando-lhes direitos e oportunidades que se apresentam no contexto social, seja no trabalho, seja na educação, na saúde ou em suas manifestações culturais próprias. Para além dessa negação, discriminação e preconceito simbolicamente estereotipam os sujeitos de dada religião e de seus pretensos seguidores.

Nessas relações, as ofensas e agressões, como utilização de palavras (xingamentos injuriosos) aos sujeitos, estabelecendo relações e visões negativas sobre suas crenças, seu credo ou sua fé, chegam às violências física e simbólica.

É importante lembrar, todavia, que há uma linha tênue entre intolerância e terrorismo religioso. Se, na concepção de Carlos Moore (2009), o racismo é expressão máxima do ódio, o terrorismo – e nele o religioso – é uma forma de violência religiosa, seja ela física, seja simbólica. Trata-se de uma ação e/ou atitude utilizada para reprimir e atingir objetivos religiosos próprios de um determinado grupo, os quais, com interesses próprios, buscam apresentar sua supremacia em relação às outras expressões religiosas. Representa um extremismo violento na interpretação do papel que determinada religião usa para justificar a sua violência.

Aqui, não temos a pretensão de interpretar o terrorismo religioso como ele foi apropriado e usado pelos estados teocráticos, especialmente os contemporâneos ou sinalizados em várias religiões. Para o caso brasileiro, como foi dito anteriormente, a linha tênue entre intolerância e terrorismo religioso está na pretensa decisão de se mostrar soberano, e aqui se quer referir às atitudes dos evangélicos neopentecostais diante das legítimas expressões das religiões de matrizes africanas e afro-indígenas, as quais, ao se utilizarem de violências variadas, trazem medo, retraimento e pânico aos adeptos de tais manifestações religiosas, impedindo até a realização dos cultos, quando não destroem seu espaço sagrado. Pode-se citar como exemplo o que significa hoje o Complexo de Israel no município do Rio de Janeiro, lembrando que as ações de intolerância e terrorismo acontecem em vários estados do país. Muitas Casas de Axé estão ameaçadas, destruídas, vilipendiadas e fechadas para que zeladores e zeladoras de santo tentem proteger sua vida e a de seus filhos e filhas, como cuidadores e orientadores espirituais que são, e várias delas têm deixado de realizar seus cultos.

O terrorismo religioso tem gerado diferentes doenças sociais. Nelas observa-se o emburrecimento humano, em face do desconhecimento da cultura, do conhecimento equivocado ou da ausência de conhecimento (ignorância plena) sobre a cosmogonia e a concepção filosófica de vida e de valores civilizatórios, a rigidez do pensamento diante das diferenças e o que vem representando o ataque à vida humana. Mais que isso, a pior doença social é o impedimento do direito de ir e vir de cidadãos e cidadãs, como princípio e direito universal, a ausência de um letramento cultural racial, em franco prejuízo da democracia plena.

Sobre o direito de ir e vir, um dos princípios liberais é a liberdade fundamental de um indivíduo se locomover livre e democraticamente, de se expressar e ter acessibilidade pelo território nacional, de entrar, permanecer ou sair dele [território nacional], consoante o artigo 5o, inciso XV, da Constituição Federal do Brasil. É um direito também reconhecido internacionalmente, sendo um princípio da Declaração dos Direitos Humanos da ONU – Organização das Nações Unidas, assinada em 1948, ainda que reconhecida no Brasil somente em l978, conforme nos informou o Babalorixá Márcio de Jagum. Esse direito é um dos pilares da liberdade, da democracia e da autonomia pessoal, embora possa ser limitado por lei em situações específicas, como em caso de emergências de saúde pública ou quando houver infração à lei. A locomoção de que trata esse princípio não se refere, para os integrantes das religiões de matriz africana e indígena, à simples circulação dos indivíduos; é um conceito muito mais amplo, quando se trata de o sujeito se expressar de determinada forma, incluindo nesta expressão a capacidade de professar seu culto específico no espaço social, na cidade ou em seu templo religioso.

No caso do Estado brasileiro, o Distrito Federal, os estados federativos e os municípios devem garantir esse princípio básico a todos os seus cidadãos, quando são impedidos por questões de diferentes ordens, inclusive por ameaças físicas e simbólicas. E é isso que vem acontecendo com a intolerância religiosa, que ocorre historicamente e na atualidade, e com o terrorismo religioso, os quais impedem o funcionamento dos cultos nas Casas de Axé, vilipendiam essas casas, destruindo os seus sagrados, e chegam a ameaçar a vida de zeladoras, zeladores, filhas e filhos de santo.

O que compete ao povo de axé e, quiçá, a toda a sociedade e, especialmente, aos poderes públicos? Continuar a lutar e a resistir, buscando diferentes formas de se combater a intolerância e o terrorismo religioso, como o racismo estrutural. Para isso, é essencial lutar por políticas públicas articuladas entre as diferentes instâncias dos poderes públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário) para este combate, incluindo, nesse sentido, a educação, as escolas e os diferentes setores, de modo a construir e garantir a segurança pública, o estabelecimento de diálogos inter-religiosos e uma educação antirracista. Ações desse porte são da maior importância e fundamentais para a vida em sua plenitude, como parte de um projeto societário democrático. E é por isso que a CFAM se fez presente nesta Audiência Pública.

III – Onde queremos chegar: repudiar a barbárie da pior espécie de um parlamentar, pedir retratação pública e cultuar a boa política, o bom combate e a civilidade necessária no embate político

Por ser uma audiência da Câmara de Vereadores, a sessão foi gravada e pode ser assistida acessando-se o link no YouTube, como ocorre habitualmente.

No primeiro momento, as apresentações e saudações foram democraticamente permitidas pela presidenta da mesa. Foram falas pulsantes e acaloradas de todas as autoridades da mesa convidadas para auxiliar nas discussões sobre a liberdade religiosa e contra a intolerância religiosa. Até que, a partir da fala do Vereador Ricardo Magalhães Garcia Gutierrez (Ricardinho Netuno), houve a proliferação de impropérios em sua manifestação, o que contaminou o ambiente e faltou com respeito à plenária presente, que reagiu de diferentes formas às suas investidas, assim como dificultou a própria condução dos trabalhos da presidenta da mesa e em nada permitiu a colaboração [a fala dele] nas discussões e nos objetivos do evento. Também em nada somou às forças políticas para avançarem no debate e nas ações voltadas ao estabelecimento de possíveis políticas públicas.

Foram impropérios trazidos de outros lugares e de outras situações, utilizados para atingir outras pessoas e que não cabiam naquele espaço. Para a CFAM, estratégias político-ideológicas, como faz de costume, deliberadamente para contaminar e prejudicar o evento tão importante para todos que se encontravam presentes.

Não obstante, saiu atropeladamente do recinto e, após o encerramento do evento, uma desagradável surpresa: quando se percebeu – dois dias depois – que ele utilizou em sua rede social imagens descontextualizadas, soltas no ar e na produção do discurso do parlamentar, com passagens distintas, insuflando o imaginário de quem o segue no Instagram, conforme se pode ver ao serem acessados os seguintes links: https://www.instagram.com/reel/DN9AyC0AWTS/?igsh=bzNkOXhjcmZkZXY= e  https://www.instagram.com/reel/DN8VlLuDmKO/?igsh=dTlwZWhmYjI1YmVk.

Fonte: Postagem realizada pelo Vereador Ricardinho Netuno, 2025.

Hoje, reconhecidamente, o espaço virtual é o campo de ataques para fomentar as cizânias, o ódio, o desrespeito, a desqualificação, ferindo as regras de sociabilidade e civilidade humana. Foram postagens em sua página, do Instagram, que, além de utilizar imagens e situações diversas, sem autorização dos sujeitos envolvidos, mesmo que tenha sido em uma audiência pública, requer que os sujeitos sejam consultados. É desta forma que geralmente pesquisadores e distintos meios de comunicação, com seus objetos de estudo e publicações, têm que solicitar a autorização dos sujeitos das pesquisas, nos atos e/ou junto aos entrevistados. A internet não pode ser entendida como terra de ninguém, em que vale qualquer coisa ou que possa ser feita de qualquer jeito, porque fulano ou sicrano decidiu. Por isso, a luta por sua regulamentação e regulação. Ainda sendo uma audiência pública, utilizar imagens sem autorização é crime no entendimento da CFAM, pois fere não só um sujeito particular, mas atinge o próprio ato do evento proposto, que era a audiência pública. Além disso, comportamentos desse porte abalam o convívio democrático e a credibilidade da ação coletiva para a concretização da audiência pública; mais do que isso, golpeia o espaço da política, das boas intervenções, da boa e necessária política, das possíveis ações, da discussão salutar de ideias contraditórias ou divergentes, que regem o trato da coisa pública e da política. O espaço para o bom combate perde-se nos emaranhados de ações daninhas que são tão prejudiciais à construção e às conquistas de possíveis e novas ações coletivas, na medida em que surge o descrédito do fazer e do pensar político. A epígrafe sequestrada pelo respectivo parlamentar se encontrava dentro de um material produzido pelo interlocutor, convidado a fazer parte de uma mesa de discussão. Ocorre que este interlocutor não é simplesmente um cidadão comum, mas um legítimo representante de um movimento da sociedade civil – o secretário-geral da Comissão Força do Axé de Maricá – e sacerdote de inquice, com cinquenta anos de iniciação nos cultos de matriz africana, além de pesquisador das relações etnicorraciais na sociedade, renomado professor universitário da rede federal, que, partindo da premissa máxima de ser um cidadão e um ser humano, merece ser tratado com todo respeito, como o tratamento respeitoso que todo parlamentar merece, desde que se coloque como um homem público, por exemplo.

O uso não autorizado de imagem ocorre quando a imagem de uma pessoa é usada para fins publicitários, comerciais, políticos ou, até mesmo, para zoação e difamação, sem o seu consentimento prévio e expresso, constitui uma violação dos direitos da personalidade.

O parlamentar fez uso da fala do secretário-geral da CFAM como forma de manifestar uma opinião política pessoal dele. Contudo, ele o fez para se autopromover politicamente, de modo a se ater à sua ideologia política. É inadequado e indevido o uso de imagem não autorizada. E o mesmo aconteceu com a cidadã e irmã Renata Lameirão, integrante da Diretoria de Comunicação da CFAM, também presente à referida audiência.

No Brasil, o direito à imagem é um direito da personalidade, protegido pela Constituição e pelo Código Civil (artigos 20 e 21). O uso sem autorização para qualquer finalidade, como em campanhas publicitárias ou redes sociais, é uma infração que pode ser punida.

Quais são as consequências do uso não autorizado de imagem? Temos os danos morais, na medida em que a utilização indevida da imagem gera o dever de indenizar a vítima pelos danos morais, que são considerados in re ipsa (presumidos), ou seja, o dano já existe pela própria violação. E o criminal. Para crime, são abordados os casos mais graves, como na exposição de imagens íntimas sem consentimento, a conduta pode ser considerada crime, previsto no artigo 218-C do Código Penal, com pena de um a cinco anos de reclusão. Aqui, com essa carta, não se espera pagamento por danos.

Não foi a figura de Pai José Luiz de Jagum que foi manchada pelo parlamentar ou pelos seus séquitos diante da postagem realizada e dos comentários proferidos, demonstrando um desconhecimento e uma ignorância ímpar, para não dizer um emburrecimento social que se reproduz historicamente, além de criticar/ofender determinada força política, que conduz a gestão pública municipal do município e aqueles que defendem essa força política. A mancha maior está na banalização e no descrédito da política e dos políticos, os quais, por interesses ditos escusos, a desenvolvem ao seu bel-prazer sem a responsabilidade que lhes cabe, esquecendo-se do real papel que podem e devem representar na sociedade. Por outro lado, percebe-se que não só para a sociedade há a necessidade de um letramento racial, mas, acima de tudo, para os parlamentares que representam o povo, na Casa do Povo – a Câmara dos Vereadores também. Não se espera, com esta Carta, o pagamento por danos morais ou a criminalização pura e simples, mas se espera o repúdio diante do aviltamento sofrido por um representante de um movimento social, exercido pelo comportamento do parlamentar supracitado, e sim a retratação pública do ato realizado por este representante do parlamento. Para quê? Para que a boa política, o bom combate e a civilidade necessária sejam os atos que precisam ser verdadeiramente produzidos no espaço social.

Comissão Força do Axé de Maricá – CFAM.

Arte e foto: Ascom/MPF

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Sonia Rummert.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

um × um =