É possível dizermos que somos uma democracia quando uma mulher negra legitimamente eleita é executada e não temos, até hoje, a resolução final desse crime?
Por Luyara Franco*, Le Monde Diplomatique Brasil
No dia 31 de outubro de 2024 Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz foram condenados pela execução da minha mãe, Marielle Franco, e de Anderson Gomes. No entanto, a nossa luta por justiça não acabou. Os acusados de serem os mandantes do crime ainda não foram julgados pelo Supremo Tribunal Federal.
Minha mãe foi uma mulher negra, liderança política, vereadora eleita com 46.502 votos, socióloga, defensora dos direitos humanos e cria da Maré. Foi a terceira mulher negra a ocupar um assento na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, seguindo os passos de Benedita da Silva e de Jurema Batista. Este fato demonstra o quanto ainda precisamos avançar para ampliar a representação política de mulheres negras, de modo que os espaços de poder e decisão reflitam a diversidade de gênero e raça da nossa sociedade.
Ao lutar contra a exploração econômica e pela efetivação dos direitos das mulheres, das pessoas negras, LGBTQIAPN+, e das moradoras de favelas e periferias, a atuação política da minha mãe e a de outras mulheres negras defensoras de direitos humanos têm contribuído ao longo da história para tornar a democracia mais inclusiva e participativa. Em tempos de avanço da extrema-direita ao redor do mundo e de ataques antidemocráticos no país, é fundamental entendermos o que a responsabilização pelo assassinato de Marielle e de Anderson significa para a nossa democracia.
Na América Latina, prevalece a impunidade em crimes praticados contra defensores de direitos humanos. A responsabilização penal dos mandantes do assassinato é crucial para que possamos romper com o imaginário de que essas violências, praticadas “pelos de cima”, não têm consequências. São quase oito anos que nossas famílias lutam por justiça. O feminicídio político da minha mãe expôs as rachaduras da nossa democracia e representou como a violência política é uma barreira para a ampliação da presença das nossas vozes femininas, negras e insurgentes dentro dos espaços democráticos.
O Brasil enfrenta diversos problemas históricos que foram agravados, nos últimos anos, pelo avanço do projeto neoliberal – sintetizados na pejotização do trabalho, na injustiça tributária e na fragilização das legislações de proteção ambiental. Minha mãe nos deixou um legado que aponta para a construção de um novo Brasil, mais justo e equitativo. A partir desse projeto de país, disputamos uma visão de mundo baseada no bem viver, em que a esperança na justiça – construída pela resistência política coletiva de mulheres negras – é a chave para a efetivação de uma verdadeira democracia no país.
Temos pressa, pois são quase oito anos de imensa saudade e tristeza. Este julgamento precisa ser marcado para que a Justiça possa responsabilizar devidamente os mandantes desse crime brutal e dar à sociedade a resposta sobre o que é a democracia no Brasil, sobre o que significam os espaços democráticos de poder. É possível dizermos que somos uma democracia quando uma mulher negra legitimamente eleita é executada e não temos, até hoje, a resolução final desse crime? Por isso, é chegada a hora de mudar esse jogo, de transformar o cenário de injustiças que tanto fragiliza a efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição e em normas internacionais e, com isso, a nossa democracia. Onde há esperança e luta, florescerá justiça.
*Luyara Franco é filha da vereadora e Diretora Executiva do Instituto Marielle Franco.
