“Operação Contenção”: a chacina como combustível para a extrema direita. Por Felipe Brito

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A informação oficial, na alvorada do dia 28 de outubro de 2025, era de que aproximadamente 2.500 policiais civis e militares foram às ruas (leia-se: aos Complexos da Penha e do Alemão) para o cumprimento de 100 mandados de prisão, com o objetivo de contenção do Comando Vermelho. Tratava-se de mais um capítulo da megaoperação batizada de “Contenção” — capítulo que redundou, dentre vários estragos sociais e pessoais, no recorde de letalidade no ranking mórbido das operações e megaoperações policiais no Rio de Janeiro. É difícil supor que a finalidade primordial da megaoperação fosse, de fato, desmontar cadeias produtivas, redes de financiamento e ganhos monetários, lavanderias financeiras da mencionada facção criminosa. É mais plausível supor que o fio da meada foi “tocar o terror” — e, para cumprir esse propósito sem tergiversação, empilhar cadáveres (seletivamente).

Este breve artigo não se propõe a apresentar um inventário de mais um episódio de horror urbano do Rio de Janeiro, tampouco entabular um debate especializado da área da Segurança Pública — deixo a tarefa a cargo dos especialistas. Com a “Operação Contenção” ainda oficialmente em curso, minha proposta é compartilhar uma singela contribuição, em caráter ainda propedêutico, sobre efeitos sociais traumatizantes/traumatofílicos contidos em eventos assoberbados de violência (como a referida megaoperação). Ademais, me interessa apontar o quanto isso se reverte em combustíveis para a extrema direita e congêneres. Para os propósitos do texto, de modo sucinto, o que caracterizo aqui como traumatizante/traumatofílico diz respeito ao transbordamento da capacidade psicofísica de assimilação, processamento, elaboração de muitas pessoas ante à virulência, exacerbação, ostensividade, aceleração desses eventos violentos. Diante do poder avassalador, de posições objetivas e subjetivas exacerbadamente assimétricas, frente à impossibilidade de enfrentamento, processamento, elaboração, forja-se um dispositivo de defesa psicofísico que consiste, basicamente, em interiorizar, alojar, introjetar a coerção, opressão, agressão — e cujo efeito é de submissão para se proteger da manifestação do efeito devastador1.

Muitos trabalhadores cariocas padecem das consequências da desagregação econômica, que pode ser descrita sumariamente nos seguintes termos: em uma primeira camada estrutural, por estarem inseridos em uma sociedade da universalização da mercadoria, precisam acessar dinheiro para sobreviver. No amálgama de pós-assalariamento e não assalariamento de massas, marcante no mercado de trabalho do Rio de Janeiro, esse dinheiro muitas vezes provém de rendimentos não ou pós-salariais, obtidos sem direitos trabalhistas ou previdenciários, sem respaldo sindical, em que os custos econômicos e subjetivos são externalizados para os ombros desses próprios trabalhadores e as partilhas de vivências (no e pelo trabalho) são ínfimas. Não é exagero considerar que esses trabalhadores, de fato, atuam assujeitados a uma base objetiva do “cada um por si e todos contra todos” — atuações que requerem largas doses de adestramento, ou seja, uma espécie de preparação corporal e psíquica em registro maquinal, que favorece formas hiperindividualistas de agir-sentir-pensar, impulsionadas por uma mistura de sentimentos e afetos de insegurança, medo, ódio (destrutivo) e ressentimento. Nessa associação de fatores objetivos e subjetivos, muitos trabalhadores sentem e interpretam a sociedade como “selvageria do cada um por si e todos contra todos”.

Junto à desagregação econômica, forma-se um circuito (as)social constituído por segregação socioespacial, violências (oficiais e extraoficiais) do aparato repressivo estatal, disputa/gestão/controle territorial armado do narcotráfico ou da milícia, truculência cultural, desvalias institucionais e, em alguns casos, negligências e/ou invasividades afetivas etc. Ligada à sensação e à interpretação da sociedade como “selvageria do cada um por si e todos contra todos”, desponta-se a sensação e a interpretação da sociedade como um todo social hostil, regido por poderes implacáveis, avassaladores. Essa sensação/interpretação tende a recrudescer formas de ensimesmamento defensivo, sob algum efeito traumatizante, impulsionadas por uma exacerbação da chave afetiva do medo/insegurança, que transitam entre acuamentos, ódios (destrutivos) e ressentimentos.

Subjacente ao supracitado circuito de deteriorações, coerções e desmazelos, há a predominância de um capitalismo de espoliação e pilhagem, com um pano de fundo sócio-histórico belicista, que se infiltra nas raízes coloniais, escravocratas e latifundiárias da formação social brasileira, e na prevalência de uma modernização concentradora de renda/riqueza e eivada de violências. No amálgama de pós-assalariamento e não-assalariamento de massas, um contingente expressivo de pessoas no Rio de Janeiro é absorvido pelos mercados ilícitos, nos quais as fronteiras entre a “licitude” e a “ilicitude” se desmancham, se misturam ou se separam por uma linha tênue. Isso é corolário da apropriação econômica de territórios periféricos e a ponta de um iceberg que alcança Fintechs, a Faria Lima e rentáveis áreas econômicas diversas. Trata-se, na verdade, de “normatividades” sob os auspícios das armas, calcadas no entrelaçamento de “violência econômica” e “violência ‘extraeconômica’” (como diria Marx) e na dissolução/confusão dos limites entre o “legal” e o “ilegal”.

É possível notar que o bolsonarismo, o campo da extrema direita, sofreu recentemente alguns danos e se encontra atravessado por disputas intestinas e fratricidas. Entretanto, os fatores objetivos e subjetivos que levam à adesão ou, pelo menos, identificação com o que ele tem a oferecer e propagar persistem. Os nexos entre extravasamento securitário e “selvageria do cada um por si e todos contra todos” geram combustíveis inflamáveis para o campo da extrema direita. Nessa perspectiva, apontar para El Salvador e postular uma espécie de “bukelyzação”2 à brasileira, buscando guarida no formato trumpista de imperialismo estadunidense, parece se oferecer como um caminho para requentar politicamente a extrema direita e manter sua aderência social. “Tocar o terror” e empilhar cadáveres (seletivamente) são mais do que bandeira política: viram eixo de governança, catalisando os dispositivos traumatofílicos de submissão à (des)ordem social. Na lógica (belicista) da extrema direita, incidir sobre a dimensão sensível e mobilizar afetos constituem móveis estratégicos de ação, com estatuto de centralidade. Inserem-se aí, por exemplo, os bombardeios de fake news — dispositivo semiótico virulento e ostensivo que, de maneira cirúrgica, atinge o “alvo”, ou seja, o perfil psicológico determinado pela captura incessante de dados promovida pelo “extrativismo digital”. A guerra semiótica exponencia o extravasamento securitário, alastra a chave afetiva subjacente da insegurança/medo, atiça o hiperindividualismo.

O tipo de “ênfase” dada pela extrema direita no tema da segurança pública aparenta para muitas pessoas, moradoras das metrópoles brasileiras, uma espécie de “comprometimento”, “implicação” com as manifestações de insegurança/medo. Do outro lado da moeda, estaria uma aparência de “distanciamento academicista” e indiferença por parte da esquerda perante essas manifestações de insegurança e os medos dessas pessoas comuns, bem como os correlatos clamores por “autoridade” e “ordem”. O campo progressista precisa encarar de frente o tema da Segurança Pública. Uma premissa indispensável para conduzir esse desafio é o empenho de se conectar com as pessoas comuns, o que requer uma melhor escuta desses clamores por “autoridade” e “ordem”, dentre outros, sob pena de continuarem sendo preenchidos pelos direcionamentos monstruosos da extrema direita e congêneres.

 

Notas

  1. A inspiração desse debate sobre “traumatizações” remonta ao psicanalista Sándor Ferenczi. Por exemplo, em Ferenczi, Sándor. Confusão de língua entre os adultos e a criança. In: Obras Completas. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ↩︎
  2. Referente a Nayib Bukele, presidente de El Salvador. ↩︎

*Felipe Brito é docente do curso de Serviço Social da UFF (Universidade Federal Fluminense) no Campus de Rio das Ostras.

Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil

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