Domingo na Vila da Barca

Com mais de 5 mil habitantes, a maior comunidade ribeirinha urbana e de palafitas do país, em Belém, denuncia exclusão, o racismo ambiental e luta por moradia digna às vésperas da COP30

Por Cristina Serra, em Amazônia Real

Belém (PA)  Na padaria Deus Proverá, encontrei-me para um café com a educadora popular Suane Barreirinhas, 37 anos, cidadã e liderança da Vila da Barca. Comunidade centenária do bairro do Telégrafo, a Vila da Barca é conhecida pelas palafitas fincadas sobre as águas da Baía do Guajará, que banha Belém. Era domingo de céu azul e Suane me convidou para um passeio pelas ruas de tábuas que conhece tão bem. Ela é cria daquele chão e daquelas águas, que vão e vêm, ao sabor das marés. “Aqui, eu me geolocalizo”, me disse, ao explicar sua conexão com o território que a formou.

A Vila da Barca fica em plena área urbana da metrópole de um milhão e 300 mil habitantes. Um primeiro olhar capta a precariedade, com despejo de esgoto sem tratamento no rio e muito lixo acumulado sob as casas, flutuando na água ou acumulado no lodo, na maré baixa. O perigo também é evidente, com muitas moradias que mal se equilibram sobre as estacas. Mas é preciso percorrer as passarelas de madeira, bater na porta e conversar com os moradores para entender laços de vizinhança e afetos que constroem uma comunidade com forte senso de identidade e consciência de cidadania.

A comunidade ribeirinha de 5 mil habitantes tem uma dinâmica econômica interna que garante o sustento de muitas famílias. A atividade que se destaca na paisagem é a pesca, com barcos ancorados, redes estendidas e até um pequeno estaleiro improvisado, onde encontrei o pescador João Serrão, 62 anos. Natural de Cametá, às margens do rio Tocantins, Serrão também é carpinteiro naval. Ele estava reformando seu barco de madeira que não troca por nenhum outro. “A madeira dá mais estabilidade ao barco. A embarcação de alumínio, o vento joga mais. Mas o barco de madeira precisa de muita manutenção”, explicou.

Serrão afirma que é preciso ir cada vez mais longe para pescar. Nos arredores da Vila da Barca é impossível devido à poluição. Ele costuma ir para os lados do arquipélago do Marajó, de onde traz camarão, pratiqueira e pescada, muito bem aceitos pelos consumidores. Ele afirma que não sai da comunidade de jeito nenhum. “Gosto muito daqui porque é como uma cidade do interior”, disse.

Tudo junto e misturado

Da Vila da Barca, moradores criam conexões com outras comunidades ribeirinhas. O Açaí do Calango é o pequeno comércio que Albertina Silva, 60 anos, estabeleceu na Vila da Barca. O marido traz os frutos da Ilha das Onças, em frente a Belém, e ela prepara a polpa para ser consumida do jeito que o paraense gosta, acompanhado de farinha, peixe, camarão ou tudo junto e misturado. “Hoje, eu vendo 40 litros de açaí por dia e atendo pedidos de todo o bairro do Telégrafo. É só pedir pelo zap”, comemorou dona Albertina, que tem uma das casas mais charmosas da Vila da Barca, onde o amarelo predomina na pintura e nos enfeites.

Pequenos negócios de comida prosperam como uma vocação na Vila da Barca. Conheci Fernando Carvalho, 23 anos, e Bianca, 25 anos, donos do Assados FB, que traz as iniciais do casal. A especialidade é o tambaqui assado na brasa, além de churrasco. “O peixe inteiro é 70 reais e a meia banda, 40”, explicou Fernando, que chega a vender 15 tambaquis no domingo. Os pedidos chegam pelo celular e ele mesmo faz a entrega do almoço quentinho na casa do cliente.

As tradições ribeirinhas, o esforço empreendedor e uma forte tradição de organização popular podem ser traduzidos pelo slogan repetido com orgulho pelos moradores: “Ô Vila da Barca boa”. A carência das condições de habitação forjou gerações na luta por melhores condições de vida e fortaleceu a coesão social para enfrentar desafios. Foi o que se viu quando os moradores resistiram a duas intervenções das obras da COP30, no final do ano passado e começo de 2025.

Uma das obras mais vistosas que o governo estadual fez para a COP30 foi o Parque Linear da Doca, que custou mais de 330 milhões de reais e chamou atenção nacional porque foram instaladas “árvores” artificiais, feitas de vergalhão, no paisagismo do local. A Doca, a cerca de dois quilômetros da Vila da Barca, é o nome mais conhecido da avenida Visconde de Souza Franco, o metro quadrado mais caro de Belém, com seus espigões de luxo, shopping, restaurantes e serviços de lazer. Um terreno da Vila da Barca se tornou a área de despejo da lama retirada do canal da Doca. “Nós viramos o ‘bota-fora’ da obra da Doca”, indignou-se Suane.

Na lama e no esgoto

Era só o começo. Em março de 2025, os moradores foram surpreendidos com faixas anunciando a construção de um “sistema de esgotamento sanitário da Doca”, dentro da Vila da Barca. A população se sentiu afrontada, relembra Suane. “Primeiro, ficamos incrédulos. Nos perguntávamos: ‘É isso mesmo?’ Há tanto tempo que a gente pede coleta de esgoto e a estação é pra Doca? Depois, veio uma grande revolta. Esse é um caso típico de racismo ambiental. O Estado escolhe quem vai viver na lama e no esgoto e quem vai ter melhoria, inclusive numa região, a Doca, que não precisa de melhoria porque já é privilegiada. A COP mostrou esse contraste.”

Os moradores procuraram o Ministério Público e pediram audiência com autoridades estaduais. O governo explicou tratar-se de uma “estação elevatória” para bombeamento do esgoto, sem causar mau cheiro para a região. O fato é que a obra da estação foi feita com a promessa de que a água e a coleta de esgoto também chegariam à Vila da Barca. “Isso nos deu uma ânsia de lutar ainda mais. Nós não queremos só água e esgoto. A nossa prioridade é moradia. Não queremos sair daqui, que é uma área central, perto de tudo, mas queremos moradias dignas para todos. Essa é a nossa luta mais antiga”, acrescentou Suane.

As lutas vêm de longe e a organização comunitária também. O Brasil se reencontrava com a democracia, nos anos 1980, quando foi fundada a Associação de Moradores da Vila da Barca. Suane conhece bem a história porque é uma das organizadoras do Museu da Vila da Barca, que ela gosta de definir como uma “casa de experiências”. Por enquanto, o museu só existe no universo virtual, mas quando ficar pronto será o guardião da memória comunitária.

Fotografias da fundação mostram os moradores registrando-se para escolher a primeira diretoria. Novamente, a voz de Suane: “A associação foi fundada em agosto de 1986. E foi democrático mesmo. Nós temos o registro de muitas pessoas analfabetas que não conseguiam assinar seus nomes, mas fazendo questão de se registrar com a digital. Porque democracia é isso, né?”

Naquela época, a comunidade dispunha de apenas uma torneira para o abastecimento de água de todas as famílias. Uma realidade de décadas retratada já em 1964 no documentário Vila da Barca, de Renato Tapajós. O curta-metragem mostra a fila de baldes, latas e panelas na única fonte de água potável para os moradores. Em 1986, a realidade era a mesma. A mobilização popular conseguiu expandir o fornecimento para parte das casas, mas a qualidade da água era duvidosa. O abastecimento de toda a comunidade só se tornaria realidade depois dos protestos contra as intervenções da COP30.

O básico para viver

Logo após a reação dos moradores, a companhia de água e saneamento do Pará, Cosanpa, foi privatizada e anunciou que levaria água potável a todas as casas da Vila da Barca. A instalação da tubulação e dos relógios medidores em cada casa já está completa e a água sai clarinha nas torneiras. Mas foram tantos anos com água de má qualidade que ainda há muita gente desconfiada, como dona Albertina, a do Açaí do Calango. “A caixa d’água não fica mais com sujeira, mas pra beber eu ainda compro água mineral”, ela me contou.

Outro que ainda não se sente seguro é o pescador Nazareno Serrão, 59 anos. “Antes, a água não era boa. Hoje, está melhor e mais forte. Dá para fazer o café e o almoço, mas para beber eu continuo comprando água mineral”, disse.

A instalação da rede coletora de esgoto por meio da tubulação que passa por baixo das passarelas e palafitas foi outra conquista. A obra deve ser concluída em abril de 2026. “Não há dúvida que foi uma grande vitória nossa. A gente está falando de conseguir o básico para viver. Mas queremos a conclusão do projeto de moradias de alvenaria. Fizemos um cálculo com valores atualizados do programa e chegamos a um valor de 210 milhões de reais para que todos os moradores tenham suas casas. É bem menos do que os mais de 300 milhões de reais do parque da Doca”, ironizou Suane.

O programa de moradias a que ela se refere é o “Palafita Zero”, do começo dos anos 2000, iniciado por meio de uma parceria dos governos municipal e federal, nas gestões de Edmilson Rodrigues (PSOL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Graças a esse programa, muitas casas da Vila da Barca são de alvenaria e em área de terra firme, em lotes próximos à região das palafitas. Possibilitou que os moradores se mudassem para casas melhores e no mesmo bairro a que já estavam acostumados. Mas mudanças sucessivas de governo não garantiram recursos para todas as habitações. Suane teme pela falta de continuidade do programa. “A nossa região, o Telégrafo, está passando por um processo de gentrificação. A gente sente a especulação imobiliária. De repente, chega alguém e compra várias casas na mesma rua. Então, por que vão melhorar a vida da gente e nos manter aqui?”, questionou.

A serviço da COP30

A luta dos moradores por cidadania e dignidade amplificou a visibilidade da Vila da Barca às vésperas da COP30 e trouxe oportunidades. Um trabalho predominante entre as mulheres é a culinária. Com o apoio da Embaixada da Suíça, a comunidade criou o seu primeiro festival “Cozinha Periférica”, em setembro, que capacitou 23 mulheres. A parceira deu frutos.

Durante a COP, as cozinheiras da Vila vão fornecer a comida de 11 eventos da Embaixada da Suíça, no Museu Emílio Goeldi, e também o serviço de café da manhã para 14 pessoas da delegação do Reino Unido. Uma das cozinheiras é Iranilda Pantoja, 34 anos, que tem como especialidade no seu cardápio o arroz com galinha. Ela está cheia de expectativa com o novo desafio. “Dá um nervoso, mas a gente dá conta”, disse Iranilda, que sonha em deixar de ser diarista, fazer um curso de gastronomia e viver exclusivamente da culinária.

Ao fim do nosso passeio, sentindo a brisa fresca que sopra da Baía do Guajará, Suane refletiu sobre a trajetória de lutas e sonhos da comunidade onde nasceu. “Nos anos 1980 e 1990, a Vila da Barca foi muito retratada nas páginas policiais. Nós não queremos isso. O preconceito coloca o morador num lugar de criminoso. Temos feito o movimento de sair desse lugar. A gente acredita muito na luta coletiva e a Vila da Barca nos ensina que só vai dar certo se for todo mundo junto”, finalizou.

As casas da Vila da Barca têm quadros pintados pelos próprios moradores que refletem a preocupação socioambiental da comunidade (Foto: Cristina Serra/Amazônia Real, 2025).

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