Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas
lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados.”
(Gabriel García Márquez, O amor nos tempos do cólera)
Por José Carlos Costa
Dizem que todo navio carrega um destino, e que o rio é apenas o espelho onde esse destino se cumpre. Houve um tempo em que o Halfeld, antes barco de transporte e de promessas, foi transformado em delegacia flutuante. Tinha nome de engenheiro e alma de carcereiro. No lugar de passageiros, abrigava suspeitos, interrogatórios, repressão, medo. Suas janelas, outrora abertas ao vento e à correnteza, foram fechadas por cortinas de medo e confissões mal redigidas.
Na verdade, o Halfeld, ao longo do mês de janeiro de 1936, permaneceu ancorado no porto de Pirapora, servindo como delegacia policial. O governo mineiro, alarmado com a greve dos marítimos da Navegação Mineira do Rio São Francisco, empresa estatal sediada ali mesmo, enviara de Belo Horizonte um delegado especial e reforço policial. A missão era pôr fim ao movimento, que ameaçava paralisar os vapores e, com eles, o curso das mercadorias, das cartas, da própria autoridade do Estado, também pondo em risco |o lucro das outras duas empresas de navegação particulares, que pressionavam o Governo exigindo repressão às lideranças grevistas.
O momento era de tensão nacional. Meses antes, em novembro de 1935, Vargas enfrentara a Intentona Comunista e, sob esse pretexto, decretara o Estado de Sítio, que se prolongaria até o ano seguinte e pavimentaria o caminho para o Estado Novo. Sob essa atmosfera de medo e vigilância, o Halfeld foi convertido em extensão aquática da repressão. O Estado navegava o rio para controlar as margens.
Foi ali, naquele vapor transformado em cela, que o delegado interrogou P.M. S., funcionário municipal e suspeito de comunismo, e convocou, também para interrogar, sua esposa, P.M.S., moça de apenas vinte e seis anos, inexperiente em política e em interrogatórios. Não se sabe que perguntas lhe foram feitas, mas a declaração que assinou informa apenas que o marido lera alguns livros de autores “extremistas” e que ela própria, temendo problemas, decidira queimá-los. Apenas isso. Suficiente para o delegado, que buscava uma justificativa para incriminar o marido, que já se encontrava detido.
Enquanto isso, em outro tempo e em outro rio, Gabriel García Márquez imaginaria um navio que também navegava sob bandeira de exceção. Em O amor nos tempos do cólera, Florentino Ariza e Fermina Daza percorrem o rio Magdalena sob a bandeira amarela do cólera, símbolo de isolamento e de liberdade clandestina, para que pudessem viver o amor deles, guardado por meio século. No romance, a bandeira é truque: o amor finge ser doença para continuar vivo. No Halfeld, porém, o Estado fingia curar uma doença — o comunismo — para espalhar o medo e impedir que os marítimos, como eram chamados os fluviários, exigissem direitos e fizessem greves, quando inevitáveis.
Um e outro navio transportavam solidões: o de Márquez, as dos amantes que resistem ao tempo; o de Pirapora, as dos homens interrogados sob o ruído da caneta do escrivão, percorrendo o papel almaço, registrando verdades e mentiras, sob o olhar frio da autoridade. No Halfeld, a correnteza era lenta, como se o rio hesitasse em carregar tamanha culpa. No navio de Florentino, ao contrário, o rio fluía com promessa de eternidade.
Um navegava para vigiar e punir; o outro, para amar. Um exibia a insígnia do Estado; o outro, a bandeira falsa da quarentena. Um atravessava o São Francisco; o outro, o Magdalena. E, no entanto, ambos falavam da América Latina, esse continente onde o poder e o desejo costumam embarcar no mesmo cais.
Hoje, quando o Benjamim Guimarães, belo e altivo, repousa no porto feito um belo Antônio das águas — cheio de forma, mas sem destino —, o São Francisco parece esperar dele um gesto, uma travessia, um recomeço. O que se ouve é que lhe falta o canal por onde a vida retorne a correr, o sulco antigo por onde o rio se fazia inteiro. Assim imóvel, o vapor é como um corpo em silêncio, com o coração ainda quente, mas o curso interrompido. E o rio, paciente, guarda em suas curvas a lembrança do que foi passagem, desejo, travessia — e a esperança do que ainda pode renascer.
É então possível imaginar que os dois navios — o da repressão e o do amor — se cruzem, um dia, em algum ponto invisível do tempo. De um lado, o rio da suspeita, pesado de silêncio e medo; do outro, o rio da esperança, o rio do amor, finalmente fecundado pela liberdade das águas.
E entre eles, talvez um mesmo rumor — antigo como o mundo: o da vida que insiste em fluir, mesmo quando o homem, em sua soberba, ergue grades sobre as águas.
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Nota histórica
Durante o mês de janeiro de 1936, o vapor Halfeld, pertencente à Navegação Mineira do Rio São Francisco, foi utilizado como delegacia flutuante em Pirapora. A medida integrou a ação repressiva ordenada pelo governador mineiro, Benedito Valadares, em resposta à greve dos marítimos, como eram chamados, os fluviários da Navegação Mineira do Rio São Francisco, ocorrida sob o Estado de Sítio decretado por Getúlio Vargas após a Intentona Comunista de 1935. O delegado especial enviado de Belo Horizonte, dr. Oswaldo Machado, e o escrivão, Ephraim Araujo, instalaram-se no navio e conduziram um inquérito político, que resultou na prisão de P.M.S. e no depoimento de sua esposa P. M.S., ambos moradores de Pirapora. Nesse inquérito, cerca de vinte pessoas foram ouvidas. O caso, que me comoveu e me inspirou a fazer esta crônica, foi registrado em documentos oficiais da polícia, disponíveis no Arquivo Público Mineiro, e exemplifica a transposição simbólica do poder repressivo para o espaço do rio, transformando o Halfeld em metáfora da vigilância que navegava sob as bandeiras do autoritarismo e do medo.
Rio São Francisco. Foto aérea: Segurança Institucional MPF.
