Reparação, já! A PEC que pode mudar o futuro do Brasil

“Para acabar com o racismo, nosso país precisa investir economicamente na superação das desigualdades, e a PEC 27 é inovação.”

Por Simone Nascimento, no blog da Boitempo

Em 2025 completamos 30 anos da Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Igualdade e pela Vida, realizada em 1995, em Brasília, levando mais de 30 mil pessoas às ruas. Também completamos 10 anos da primeira Marcha das Mulheres Negras. De lá pra cá, conquistamos avanços fundamentais: a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, a Lei de Cotas, a criminalização do racismo, o Estatuto da Igualdade Racial e, mais recentemente, o Ministério da Igualdade Racial. Ao longo dessas décadas, seguimos resistindo na contramão do genocídio em curso no país. O movimento negro tem sido o maior projeto de vida, democracia e futuro elaborado pelo povo negro para o Brasil.

Neste novembro, tomamos novamente as ruas nas marchas do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, por todo o país, e na 2ª Marcha das Mulheres Negras, ocorrida no último 25 de novembro, em Brasília. Levantamos uma bandeira que pode inaugurar um novo ciclo no país: a reparação histórica. A Proposta de Emenda à Constituição nº 27/2024, conhecida como PEC da Reparação, é uma das iniciativas mais ambiciosas desde 1988 para enfrentar as desigualdades raciais no Brasil. Pela primeira vez, o país discute um mecanismo constitucional permanente dedicado à reparação econômica da população negra e à promoção da igualdade racial.

A PEC propõe três transformações centrais: a criação de um novo capítulo na Constituição para a promoção da igualdade racial; a instituição do Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial (FNREPIR); e a definição de aportes obrigatórios para garantir sua sustentabilidade. É um passo histórico que insere a igualdade racial como princípio estruturante do Estado, dando lastro permanente a uma agenda que, por décadas, dependeu da eleição e pressão sob nossos governos. A igualdade racial é um direito fundamental, deve ser assegurada como um dever do estado e da sociedade.

O novo capítulo constitucional reconhece que a desigualdade racial é um eixo estruturante da sociedade brasileira. Já o FNREPIR será o instrumento capaz de financiar ações para corrigir desvantagens históricas, ampliar oportunidades econômicas, fortalecer iniciativas sociais e culturais e sustentar políticas de impacto nacional voltadas à população negra. Um Conselho Consultivo, com participação do Estado e da sociedade civil, acompanhará a execução e garantirá transparência.

O Fundo deve dialogar com o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), de modo a integrar a União, estados e municípios, para promoção de uma rede federativa de políticas públicas. Entre as propostas de diretrizes que orientarão a formulação e execução das políticas públicas de promoção da igualdade racial, destacam-se a transversalidade da política de igualdade racial, o fortalecimento institucional, a proteção das comunidades quilombolas e a ampliação da participação social. A previsão de suas fontes de financiamento e de um conselho deliberativo plural e representativo reforça o compromisso com uma gestão democrática.

A PEC prevê múltiplas fontes de financiamento, incluindo dotações da União e doações internas e internacionais. O texto original previa também indenizações de empresas que lucraram com a escravidão, mas esse trecho foi retirado pela relatoria sob o argumento de insegurança jurídica — uma decisão que considero equivocada. Ainda assim, o parecer da Comissão Especial deixa claro que mecanismos de responsabilização econômica seguem possíveis por meio de acordos, fundos patrimoniais e instrumentos específicos.

A União deverá aportar R$ 20 bilhões em vinte anos. É um avanço estrutural num país cujo Ministério da Igualdade Racial, em 2025, tem apenas R$ 202,72 milhões de orçamento. Pela primeira vez, políticas de igualdade racial ganhariam escala orçamentária mais compatível com o tamanho da desigualdade. A CCJ retirou a exclusão desses aportes do limite fiscal, o que acende um alerta, mas a obrigação do aporte permanece — e a disputa agora é garantir que ele seja efetivo e protegido de manobras. Do ponto de vista fiscal, há muita transparência e indicadores obrigatórios previstos em seu texto. A governança é vista como condição de legitimidade, estabilidade e proteção do fundo.

Depois da promulgação, uma Comissão Mista do Congresso Nacional terá 180 dias para regulamentar o FNREPIR. Ao impor esse prazo na própria Constituição, a PEC impede que a política fique engavetada por anos, como ocorreu com o Estatuto da Igualdade Racial, vitória conquistada no ciclo anterior.

Como já afirmava Abdias do Nascimento em O genocídio do negro brasileiro (1978), o Estado brasileiro construiu um sistema que não apenas escravizou, mas continuou a destruir vidas negras após a abolição — e que por isso “deve reparação integral ao povo negro”. Abdias foi um dos primeiros intelectuais e parlamentares a afirmar que reparação não é metáfora, mas política pública: envolve restituição material, reconhecimento do crime histórico e transformação estrutural do Estado. Sua defesa antecipou, em décadas, o que hoje discutimos com mais força no Parlamento — que não existe combate real ao racismo sem enfrentar a dívida econômica e moral acumulada ao longo de mais de três séculos de exploração.

Agora, em 2025, o relator da proposta, o deputado federal Orlando Silva, sintetiza o diagnóstico que orienta a PEC: “As políticas de igualdade racial no Brasil sempre enfrentaram dois obstáculos históricos — a ausência de recursos permanentes e a falta de mecanismos estruturais de financiamento.”

O Brasil investiu no racismo, no pós-abolição, o Estado brasileiro destinou incentivos e terras a imigrantes europeus enquanto negava direitos básicos às pessoas negras recém-libertas, produzindo um ciclo de desigualdades que perdura até hoje, precisa prestar contas desta dívida histórica. Não há igualdade racial possível sem justiça econômica. É hora de reparação!

As esquerdas, o campo progressista, todas e todos que defendem a constituição cidadã, precisam encarar essa realidade e abrir mão de privilégios coletivos gerados na escravidão.

Estamos formulando, em audiências públicas e protestos, em todo Brasil. É fundamental garantir governança paritária no conselho do fundo, blindar o FNREPIR contra contingenciamentos, estabelecer critérios de impacto e assegurar a articulação federativa via SINAPIR. Também cresce a pressão pela inclusão de mecanismos de responsabilização econômica de empresas e instituições.

A PEC 27 representa uma mudança de paradigma. Ela ultrapassa o formato tradicional de política pública: cria uma arquitetura constitucional, com governança, recursos e escala para enfrentar de forma permanente as desigualdades raciais. Ou seja, é progressiva! É o reconhecimento explícito da responsabilidade histórica do Estado brasileiro e do compromisso com a reparação econômica — não como pauta isolada, mas como princípio constitucional.

Lutar pela aprovação da PEC da Reparação é, em 2025, a principal bandeira do movimento negro brasileiro. É uma luta de gerações, que atravessa séculos de desigualdade no Brasil. É a oportunidade de o Brasil honrar sua dívida histórica e construir um futuro em que a igualdade racial não seja promessa, mas realidade. É chance de inaugurar um novo ciclo!

2ª Marcha das Mulheres Negras, Brasília (2025). Foto: Bruno Peres / Agência Brasil

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