Bernardo Camara, VPAAPS/Fiocruz
Pela primeira vez na sua história, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) abriu um espaço específico na véspera de iniciar o 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão 2025) para um debate totalmente voltado ao saneamento indígena. Organizado pelo Grupo de Trabalho Água e Saneamento da Fiocruz, em parceria com a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), o Fórum Nos caminhos das águas, da saúde e do Programa Nacional de Saneamento Indígena (PNSI) aconteceu na sexta-feira (28/11), como atividade pré-Congresso.
Com o protagonismo de lideranças indígenas de diferentes regiões, pesquisadores da Fiocruz e de outras instituições, o encontro resultou em uma carta coletiva pedindo ao governo a publicação do PNSI – o que não foi feito durante a COP30, como era esperado. “O PNSI nasce da força dos territórios e da união de muitos caminhos. Expressa uma conquista histórica construída com diálogo, responsabilidade pública e participação direta dos povos indígenas. Sua publicação representa um avanço estratégico para a política de saúde indígena. E fortalece o compromisso do Estado brasileiro com a dignidade, a saúde e o direito às águas e aos territórios”, diz a carta, assinada pelos participantes do Fórum.
Há anos a Fiocruz acompanha o tema e apoia a construção do PNSI. “Trazer este debate para o principal congresso de saúde coletiva do país é uma iniciativa pioneira e inovadora. O saneamento é um determinante social de saúde. E ao mesmo tempo em que é um direito da sociedade como um todo, é uma obrigação do Estado. Por isso, nossa intenção aqui é aprofundar o debate e colaborar ainda mais na construção e implementação dessa política”, disse o coordenador de Saúde e Ambiente da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz), Guilherme Franco Netto.
O encontro discutiu a importância do Programa Nacional de Saneamento Indígena para a garantia do bem-viver das populações indígenas. “Se falta saneamento, não podemos falar de saúde do nosso corpo-território”, resumiu a indígena e pesquisadora na Fiocruz Ceará, Eleniza Tabajara, que participou do fórum.
Coordenador do Grupo de Trabalho Água e Saneamento da VPAAPS/Fiocruz, Alexandre Pessoas Dias ressalta que o aprofundamento desse debate no Abrascão é histórico e estratégico. “Acredito que por meio desse evento e de outras iniciativas a Abrasco possa reforçar a necessidade concreta da institucionalização do PNSI”, disse. “Saúde e saneamento estão completamente interligados, pois o saneamento é uma ação primária em saúde – e esta é uma dívida histórica que o Estado brasileiro tem com as populações indígenas”.
Construção coletiva
Desde a primeira legislação sobre saneamento básico no Brasil, em 2007, há a recomendação de “proporcionar condições adequadas de salubridade ambiental aos povos indígenas, com soluções compatíveis com suas características sociais”. Foram, portanto, quase 20 anos para que se construísse uma política específica de saneamento voltada para a realidade indígena.
E uma de suas particularidades é justamente estar atrelada ao Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). “A gente não dissocia o saneamento da saúde porque a população indígena não dissocia isso: para eles, a saúde do território e do corpo são uma coisa só”, disse o diretor do Departamento de Projetos e Determinantes Ambientais da Sesai, Bruno Cantarella.
Considerar essas especificidades culturais foi uma das premissas para a construção do PNSI: do diagnóstico à definição de suas metas, o programa nasce a partir da participação ativa das comunidades e da escuta de suas necessidades. Foram inúmeras oficinas, estudos de caso, diálogos com lideranças, além da consulta pública nacional que mobilizou diferentes povos, equipes dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), cientistas e parceiros nacionais e internacionais. A Fiocruz participou desse processo em várias instâncias e com diversas iniciativas, como um seminário que reuniu pesquisadores para debater o tema.
O PNSI também nasceu baseado em um amplo diagnóstico sobre a realidade do saneamento nas terras indígenas do país. 34 pesquisadores – muitos deles indígenas – trouxeram dados concretos dos territórios. A partir desse levantamento, foi constatado que, atualmente, apenas 53% da população indígena têm acesso ao abastecimento de água adequado. O número cai para 10% quando se trata de esgotamento sanitário. E em relação aos resíduos sólidos, somente 2% têm manejo adequado.
Os números tornam ainda mais evidente a urgência de se implementar o PNSI, especialmente por se tratar de populações historicamente vulnerabilizadas. “Nossas terras estão cercadas por fazendas e nossos rios estão contaminados. Quando se fala de saneamento é preciso considerar nossos conhecimentos ancestrais sobre a natureza e sobre como tornar nossos territórios saudáveis”, reforçou André Baniwa, consultor de medicinas indígenas da Sesai.
E disso o PNSI pode se orgulhar. “O programa não foi feito a toque de caixa: poucas políticas públicas ouviram tanto a base para serem elaboradas. Esse é o diferencial: o PNSI traz a visão e o protagonismo indígenas. É uma política pública que nasce do chão das aldeias”, diz Bruno Cantarella. “O programa está muito robusto: traz diretrizes, metas, valores, sabe onde, como e porque executar suas ações. Agora só precisamos avançar com a sua execução”.
Leia a carta coletiva escrita durante o Fórum de Saneamento Indígena no 14º Abrascão.
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Imagem: Lideranças indígenas que participaram do encontro assinaram carta pedindo a publicação do Programa Nacional de Saneamento Indígena (PNSI) (foto: Divulgação)
