Manaus: Quando o risco toca o sagrado

A ameaça da crise climática e do descaso do poder público aos terreiros de religiões de matrizes africanas e a luta pela proteção desses territórios sagrados, em Manaus

Por Caio Mota, Le Monde Diplomatique Brasil

No mês em que o Brasil celebrou a Consciência Negra e sediou a COP30, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, um mapeamento inédito revelou uma ameaça direta aos terreiros de religiões de matrizes africanas, em Manaus. Muitos desses territórios sagrados estão instalados em áreas suscetíveis a deslizamentos e inundações. O levantamento, construído a partir de dados públicos, mostra que comunidades negras e de terreiro convivem com riscos altos em regiões marcadas por ocupações precárias, falta de infraestrutura e impactos que se intensificam com a crise climática. Esse cenário expressa o racismo ambiental e expõe como a cidade foi organizada de forma desigual, deixando populações inteiras sem proteção e sem acesso a políticas de adaptação.

A investigação foi publicada no boletim de novembro do Atlas ODS Amazônia, que integra o Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia (PGCASA) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em parceria com o Instituto Ganga Zumba. O estudo, intitulado “Fé ameaçada – territórios sagrados estão em risco geológico e hidrológico em Manaus”, cruzou a localização de 75 terreiros com o mapeamento oficial de risco do Serviço Geológico do Brasil (CPRM). A combinação desses dados mostra que muitos templos estão inseridos em áreas onde o risco de deslizamentos, erosões e inundações é elevado. Essa ameaça alcança não apenas as estruturas físicas, mas também a vida espiritual, a memória coletiva e os vínculos comunitários que sustentam esses territórios.

O mapeamento da CPRM indica que Manaus possui 438 áreas classificadas com risco alto ou muito alto. Cerca de 112 mil pessoas vivem nesses locais. As Zonas Norte e Leste concentram muitos domicílios vulneráveis e também abrigam a maior presença de terreiros. A Zona Sul, marcada por enchentes frequentes, apresenta o mesmo padrão. O boletim do Atlas ODS Amazônia registra que a Zona Norte reúne 14 templos a menos de 100 metros de locais de desastre. Esse número aumenta para 22 quando o raio analisado é ampliado para 200 metros. Há ainda aproximadamente 10 terreiros próximos a pontos que já registraram deslizamentos e erosões. Esses dados reforçam a urgência de políticas que garantem segurança territorial.

“Em Manaus, muitos terreiros, especialmente na periferia, foram erguidos onde havia acesso possível, não onde havia segurança. Isso é resultado direto da vulnerabilidade social, do racismo ambiental e da ausência histórica de políticas públicas para nossas comunidades”, reforça a sacerdotisa Agonjaí Nochê Flor de Navê, do Templo de Tambores de Mina Jejê-Nagô Xwê Ná Sin Fifá.

“Quando um terreiro é erguido em área de risco, todo esse universo fica ameaçado.” Também conhecida como Mãe Flor de Navê, ela mobiliza há décadas ações de fortalecimento dos povos de terreiro em Manaus, como o Balaio de Oxum, e contribui com os levantamentos da pesquisa. Ela explica que a perda de um espaço sagrado rompe práticas ancestrais e desarticula vínculos comunitários que levam anos para serem construídos. “Para nós, povos de terreiro, a casa não é apenas uma estrutura física. É território sagrado, espaço de memória, de cura, de aprendizado e de ancestralidade.”

Mãe Flor reforça que o poder público precisa reconhecer que a vulnerabilidade dos terreiros não é um acaso geográfico, mas resultado direto do racismo ambiental e da ausência histórica de políticas que garantam território seguro para o povo negro e de matriz africana. “Se queremos diminuir esses riscos, é fundamental mapear os terreiros que hoje estão em áreas de encosta ou sujeitos a alagamentos e oferecer alternativas reais de reassentamento digno, construídas com diálogo e respeito às lideranças religiosas.”

O racismo ambiental apontado por Mãe Flor de Navê revela um processo histórico que definiu quem tem acesso à proteção e quem é obrigado a enfrentar o perigo sem apoio. A climatóloga Aixa Lopes, que integra a equipe responsável pelas análises, explica que desastres naturais são situações em que uma comunidade é atingida por fenômenos extremos, como chuvas muito fortes, cheias ou deslizamentos, que geram danos e prejuízos. Ela reforça que a combinação entre mudanças climáticas e desigualdade aumenta a vulnerabilidade de quem vive nessas áreas e destaca que identificar esses pontos de risco é essencial para orientar políticas e ações que protejam essas populações.

“O primeiro passo é a população saber se está ou não em uma área de risco. A partir disso, é necessária a articulação entre diferentes atores. Para nós, pesquisadores, isso envolve produzir estudos e projetos voltados para as comunidades, difundir conhecimento de acesso simples e, principalmente, disponibilizar evidências científicas e recomendações que possam orientar decisões governamentais. Para a população, além do suporte social, é fundamental um planejamento urbano adequado, evitando construções em áreas de risco e garantindo a manutenção das drenagens pluviais e dos canais dos córregos, para impedir o acúmulo de resíduos nas ruas e calçadas, sobretudo no período de chuvas.”, explicou a pesquisadora.

Crise climática

O Amazonas enfrenta eventos extremos de cheias e secas de maneira constante. Em 2024, dados da Defesa Civil indicam que a estiagem atingiu mais de 700 mil pessoas. A seca dos rios prejudicou o transporte, aumentou o custo dos alimentos, deixou o ar pesado por causa da fumaça das queimadas e intensificou o calor. Em Manaus, esses efeitos se tornam ainda mais intensos nas áreas periféricas, onde faltam drenagem, pavimentação, saneamento básico e políticas de adaptação climática. A vida cotidiana passa a ser moldada pela incerteza. Quando chove muito, o medo se volta aos deslizamentos. Quando chove pouco, a ameaça surge na fumaça das queimadas, no calor extremo e no aumento da falta de água.

A realização da COP30, na cidade de Belém, ampliou a visibilidade da Amazônia no debate climático mundial e reforçou o papel da região no enfrentamento das mudanças climáticas. Mesmo com essa projeção internacional, as discussões seguem concentradas em metas tímidas, com poucas mudanças concretas, e pouco espaço é dado aos territórios culturais e espirituais que sustentam a vida na região.

A distância entre o que se debate nesses grandes eventos e o que acontece em áreas vulneráveis, como as de Manaus, mostra que essa visibilidade não se transforma, por si só, em proteção real. Comunidades negras e de terreiro continuam expostas ao risco diário de deslizamentos, alagamentos e abandono, sem políticas que reconheçam sua existência e seu direito ao território. A proteção dos terreiros precisa entrar na agenda do clima como parte da adaptação e da justiça territorial e climática. Se a Amazônia é vista como peça central para enfrentar a crise climática, as pessoas que mantêm esse território vivo também precisam ser protegidas.

O pesquisador do Atlas ODS Amazônia, Danilo Egle, que também integra os esforços do estudo “Fé Ameaçada”, reforça a urgência da questão. Ele explica que o mapa elaborado pela equipe tem o objetivo de chamar atenção para essa realidade e orientar caminhos possíveis a partir da sua visibilização. “Queremos apresentar essas informações em uma linguagem simples e acessível, que fortaleça os esforços feitos por lideranças religiosas de matrizes africanas por melhores condições, não apenas nos locais onde os terreiros estão, mas em toda a região onde esses espaços de fé atuam e contribuem”, afirma o pesquisador.

As recomendações do levantamento apontam para a necessidade de aprofundar o mapeamento em colaboração com as comunidades, explica Danilo, que é coordenador técnico do Atlas. Segundo ele, é essencial criar políticas de regularização fundiária e investir em obras de infraestrutura e prevenção. “Contenção de encostas, drenagem eficiente e saneamento básico são medidas fundamentais. Também precisamos desenvolver campanhas que valorizem a importância cultural dos terreiros e informem sobre os riscos e cuidados, porque esses espaços de fé estão passando por situações muito graves.”

A defesa desses territórios, no contexto da Consciência Negra e das discussões trazidas pela COP30, é uma pauta urgente. Proteger os terreiros de matriz africana significa garantir dignidade, futuro e o direito de viver o sagrado sem medo. É também um reconhecimento do papel histórico dessas comunidades na formação de Manaus e da necessidade de construir uma cidade que não repita as violências que atravessam gerações.

Caio Mota é jornalista com experiência nas lutas sociais da Amazônia e da América Latina, atuando em comunicação popular. Integra o Instituto Proteja, fortalecendo movimentos, grupos e comunidades na luta por terra e território.

Imagem: Deslizamento no bairro Mauázinho – Crédito: João Dejacy

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