Quando a ciência ousa transformar o Brasil

Dois pesquisadores apresentam, no grande encontro da Saúde Coletiva, suas contribuições. Uma maneira nova (e subversiva) de enxergar a alimentação. O uso de big data para construir políticas de igualdade. Saberá o poder público aliar-se à academia para enfrentar as misérias do país?

Por Gabriela Leite, em Outra Saúde

Dois dos maiores expoentes da ciência brasileira estiveram presentes na noite de terça (2) no 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, ao lado da sanitarista, socióloga e ex-ministra da Saúde que comandou a reconstrução do SUS após a pandemia, Nísia Trindade. Eram os epidemiologistas Carlos Monteiro, fundador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP), e Mauricio Barreto, criador do Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs/Fiocruz). As instituições expressam duas enormes conquistas para a saúde dos brasileiros, com influência global. A concepção e condução do grande debate ficou a cargo do sanitarista e vice-presidente da Abrasco, Reinaldo Guimarães.

Um centro de análise de um enorme volume de dados da população brasileira, onde dezenas de pesquisadores estão reunidos para averiguar a efetividade de programas de proteção social e seus impactos na saúde – esse poderia ser um resumo do papel do Cidacs, localizado no Parque Tecnológico da Bahia, em Salvador. Sua existência foi possível graças a um diálogo da academia com a gestão pública. Em meados de 2011, começou a ser firmada uma parceria entre pesquisadores e o Ministério do Desenvolvimento Social, por influência da então ministra Tereza Campello. A ideia era ceder para estudos epidemiológicos os dados do Cadastro Único (CadÚnico) – um registro do governo federal de informações de todas as pessoas que se beneficiam de programas assistenciais como o Bolsa Família.

Hoje, 9 anos após a criação do Cidacs, esse sistema conta com informações de 140 milhões de brasileiros – utilizando tecnologias complexas, como alta capacidade computacional. É possível cruzar informações de programas sociais com dados de saúde, nascimento, nutrição, óbitos e outros. O resultado é uma imensa base de investigação, que alimenta pesquisas reveladoras sobre as determinações sociais da saúde. Algumas delas, citadas por Mauricio, demonstram que o Bolsa Família, além de elevar a renda dos mais empobrecidos, teve dezenas de impactos secundários. Contribuiu para a melhora do estado nutricional, a redução do baixo peso ao nascer, da mortalidade infantil e materna, de doenças cardiovasculares – até abaixou níveis de hospitalização por suicídio e melhorou a saúde mental de seus beneficiários.

Em sua fala, Mauricio frisou a importância de a epidemiologia estar fortemente vinculada à Saúde Coletiva no Brasil e mostrou como novas tecnologias podem fazer avançar a compreensão sobre a população brasileira ­– e, mais importante, atuar sobre as imensas desigualdades do país. Segundo ele, as descobertas do Cidacs sobre o impacto do Bolsa Família na saúde mostram que “a importância do SUS tem que ser compatibilizada com processos de transformação da sociedade”. Se um programa como esse, que reduz muito ligeiramente o fosso entre ricos e pobres, provoca tantas transformações na vida das pessoas, “imaginem o que faria o pleno emprego, por exemplo”, instiga. Maurício encerrou sua fala com uma defesa: “O SUS é uma engenharia em construção, e ela precisa de um ramo da Ciência & Desenvolvimento que seja inovador e permita a transformação”.

Uma mudança de paradigma na alimentação

Tanto Mauricio quanto Carlos Monteiro, que se dirigiu ao público em seguida, são mostras de que mesmo em condições muito desfavoráveis, a ciência brasileira comprometida com avanços sociais segue forte. O pesquisador da USP foi considerado, pelo Washington Post, uma das 50 pessoas que mais influenciariam o ano de 2025. Seus estudos foram responsáveis por uma mudança de paradigma na alimentação. Monteiro foi um dos criadores da NOVA, uma classificação que categoriza os alimentos de acordo com seu grau de processamento – de in natura a ultraprocessados. Até então, grãos de cereais e biscoitos eram igualmente classificados como “fontes de carboidrato”; filé de peixe e salsicha, “proteínas”. Mas os estudos realizados por Monteiro e seus colegas foram mostrando, a partir do final dos anos 2000, que isso não era correto.

Ao longo do século passado, os avanços na indústria eram muito positivos, ao prolongar a duração da comida, conta Monteiro. “Mas a partir de certo momento ela passou a investir em substitutos dos alimentos, extremamente mais lucrativos que os convencionais”, alerta. São os ultraprocessados, formulações industriais com baixíssimo nível de nutrientes e repletos de compostos químicos para torná-los mais agradáveis ao paladar e olfato. Segundo o epidemiologista, a partir de determinado momento, a indústria – com seu enorme poder de influência ­– começou a mudar o padrão de alimentação das populações para promover esse tipo de comida.

Os estudos do grupo de Carlos Monteiro foram pioneiros em mostrar que essas formulações estavam impactando a população de forma extremamente negativa, causando aumento da obesidade e de doenças crônicas como diabetes e hipertensão. O autor foi um dos responsáveis pela Vigitel, o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico que começou a ser implantado a partir de 2005. Por meio de entrevistas à distância, o Ministério da Saúde passou a fazer uma avaliação de consumo alimentar e atividade física. As primeiras hipóteses sobre a mudança na alimentação dos brasileiros começaram a surgir quando os pesquisadores perceberam que a desnutrição estava caindo, mas a obesidade aumentava.

A NOVA tem caráter subversivo, defende Monteiro, porque “aponta com o dedo para quem é o responsável por essa epidemia” – o grande capital. Sua hipótese foi testada por dezenas de cientistas mundo afora que comprovam os malefícios do aumento do consumo de ultraprocessados. Hoje, a classificação de alimentos criada pelo grupo de pesquisadores do Nupens já inspirou as diretrizes de 15 países – tão diversos quanto a França e a Malásia ­– e influenciou políticas regulatórias por toda a América Latina. O próprio modelo de perfil de nutrientes elaborado pela Organização Pan-americana da Saúde (Opas) baseou-se na NOVA.

A fala de Carlos Monteiro traçou um panorama de sua trajetória acadêmica, e merece ser assistida por completo. Vale destacar sua primeira experiência, quando desenvolveu a dissertação de mestrado em 1975, no departamento de medicina preventiva da Faculdade de Medicina da USP. O epidemiologista fez um levantamento nutricional nos bairros onde fazia residência médica, no Vale do Ribeira ­– região pobre do sul do estado de São Paulo. Seu grande achado: as crianças de famílias que tinham uma porção de terra para plantar, por menor que fosse, eram muito menos afetadas pela desnutrição que aquelas sem posse. “A recomendação da dissertação era a reforma agrária”, brinca, lembrando que aquele era um período de intensa perseguição da ditadura militar no Brasil.

Como resposta, políticas públicas

Falando nos militares… Após a apresentação de Monteiro, o mediador Reinaldo Guimarães passou a palavra para a ex-ministra Nísia Trindade, lembrando: as grandes descobertas da ciência brasileira não são efetivas se não houver quem as escute no poder público. “Imagine se Carlos Monteiro ou Mauricio Barreto tivessem que lidar com um general Pazuello para implementar suas descobertas”, provocou, recordando o desmonte do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro. Nísia, ela própria uma renomada pesquisadora, comandou a reconstrução da pasta com os ouvidos atentos aos cientistas e contribuiu para melhorar os indicadores da saúde dos brasileiros em seus pouco mais de dois anos no ministério.

Ela saudou a presença dos dois epidemiologistas: “A ciência do Brasil hoje é referência e os trabalhos de vocês têm muito a ver com isso. Isso vai além de publicações em periódicos – embora sejam muito importantes. Esse trabalho influencia a construção de políticas públicas”. Ao traçar um panorama das ações de sua gestão à frente da saúde, frisou: “Para que haja consequência no que estamos falando, é importante o investimento em Ciência, Tecnologia e Inovação” – e destacou o “papel de indução do Ministério da Saúde, indução que não se faz de gabinete, mas na escuta e diálogo feitos com comunidade científica e ouvindo os problemas da sociedade”.

Créditos: Kio Lima/Abrascão

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