Porque sustentamos a primavera entre os dentes, marchar é preciso!

Confira a coluna Aromas de Março deste mês

Por Simone Magalhães*, da Página do MST

No dia 25 de novembro aconteceu, em Brasília (DF), a 2ª Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver. Pela esplanada dos ministérios marcharam 300 mil mulheres mobilizadas a partir dos comitês organizados nos 27 estados da Federação e de comitês internacionais que se fizeram presentes com representações de 33 países. As mulheres do MST estiveram presentes na Marcha, “reafirmando que não há reparação histórica possível sem a democratização da terra. A luta pela terra, pela soberania alimentar e pelo direito de produzir alimentos saudáveis é indissociável do combate ao racismo e ao patriarcado”, é o que afirma a comunicadora Sem Terra, Fernanda Alcântara.

Por que as mulheres negras estão marchando?

Nesses dez anos, desde a histórica edição da Marcha das Mulheres Negras (2015), que denunciou o racismo, o sexismo e a violência, a organização das mulheres negras, em torno da Marcha das Mulheres Negras, teve que se fortalecer e se reinventar para constituir-se em referente sociocultural e político e enquanto instrumento de denúncia das violências e das desigualdades, bem como portadora de proposições para o enfrentamento das mazelas que tentam subordinar a população negra em geral e as mulheres em particular.

Nesta década, desde a primeira Marcha, o diagnóstico segundo o qual o pensamento racista, que fundamentou ideologicamente os 400 anos da escravidão no país, não mudou e continua a se retroalimentar nesta fase do capital contemporâneo, em que a financeirização da economia tensiona a política institucional para a retirada de direitos duramente conquistados pela classe trabalhadora. O desfinanciamento do sistema de saúde pública, a institucionalização da flexibilização do trabalho e a destruição de redes de proteção social, por exemplo, são algumas das medidas que impactam diretamente a população negra e as mulheres em particular.

Com efeito, a partir da crise capitalista que exigiu do país o seu alinhamento às tendências econômicas neoliberais de austeridade fiscal, a sociedade brasileira viu suas elites econômicas atuarem no campo da luta de classes sem disfarces e nem receios para salvaguardar seus lucros e privilégios. Para defender seus interesses, as burguesias agrária, financeira e comercial se entrincheiraram com aparatos “legítimos” e ilegítimos da força para barrar todos aqueles que seriam um obstáculo aos seus negócios. É revelador, neste contexto, o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Silva, em 2018, no Rio de Janeiro, demostrando que a violência de gênero e racial se faz presente nos mais diferentes espaços, quando corpos e sujeitos negros ousam ocupar lugares que historicamente lhes foi negado, principalmente aqueles circunscritos às esferas de poder e do debate público.

A partir do impeachment da presidente Dilma, da prisão de Lula e da vitória de Bolsonaro, o país passou a ser um laboratório privilegiado, não apenas das medidas neoliberais de austeridade fiscal, que colocaram o Brasil no mapa da fome, permitindo que 700 mil pessoas morressem na Pandemia de Covid-19, que jogassem na pobreza 12 milhões de pessoas e 585 mil na extrema pobreza, mas, sobretudo, a sociedade pode revelar o seu alto nível de conservadorismo e grupos sociais passaram a propagar discursos de ódio direcionados às populações LGBTQIA+, Negra, Indígenas, Mulheres, bem como aos movimentos sociais que lutam pelos direitos humanos no país.

Não bastasse a promoção das violências contra populações vulnerabilizadas e racializadas, grupos de conservadores e reacionários, financiados pelo agronegócio e congêneres, atentaram contra as instituições brasileiras, levando a cabo uma tentativa de Golpe de Estado, em 8 de janeiro de 2023. Tudo isso operando sob a lógica do aprofundamento das desigualdades sociais, com desfinanciamento de políticas sociais, servindo de substrato para as condições jurídicas e institucionais de perpetuação da concentração de riquezas nas mãos de poucos, a exemplo do lucro do banco Itaú, que cresceu 11,3% neste ano de 2025, e vai chegar a um novo recorde de lucro, de R$ 12,4 bilhões, segundo projeções.

No contexto em que a lógica do capital usurpa toda a riqueza socialmente produzida e garante as benesses para poucos, em que o racismo e o sexismo estruturais constituem as bases das desigualdades do país, o que a sociedade brasileira tem reservado às mulheres negras?

A pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/2023) apontou que 41% das mulheres inseridas no mercado informal de trabalho eram negras e 31% não negras. A PNAD aponta que 91% das trabalhadoras domésticas são mulheres e 67% delas são negras. Ou seja, o trabalho precarizado e mal remunerado tem sido a maneira pela qual mulheres negras geram alguma renda para si e sua família. Ademais, são elas as que encontram maiores barreiras para o acesso à educação e ascensão profissional, sofrem negligência no sistema de saúde, exposição a diferentes tipos de violência, além da sub-representação nos espaços de decisão. Além disso, as mulheres negras são aquelas que estão mais expostas à violência de gênero, conforme levantamento do Comitê de Enfrentamento à Violência de Gênero e Raça, o qual aponta que “o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres no mundo, e quando se analisa por raça, as mulheres negras lideram as estatísticas em todas as regiões”.

Conforme dados do Mapa Nacional de Violência de Gênero, no primeiro semestre de 2025, o Brasil registrou 40.418 crimes de gênero. Nesse mesmo período ocorreram 5.292 tentativas de feminicídio, sendo 1.682 mulheres assassinadas, uma média de 5 mortes por dia. Do total de vítimas, 63,6% eram mulheres negras. Na maioria dos casos, o feminicídio segue um mesmo perfil: a mulher é morta por um parceiro íntimo – atual ou anterior – como marido, namorado, ex-marido ou ex-namorado, ou ainda por alguém com quem mantinha laços de parentesco.

Embora as organizações que compõem a Marcha das Mulheres Negras apresentem diversas demandas, cumpre destacar que um ponto de convergência é o combate e o enfrentamento à violência de gênero, já que a violência letal contra as mulheres negras atinge 68,2% das mulheres assassinadas no país. Conforme apurou Fernanda Alcântara, além da violência física, a violência econômica também é um dos males que atingem os lares brasileiros. Segundo o Censo 2022 do IBGE, cujos recortes de gênero e raça foram detalhados recentemente, as mulheres já chefiam quase metade dos lares do país (49,1%). No entanto, a vulnerabilidade é marcante: 70% dos domicílios chefiados por mulheres negras enfrentam algum nível de insegurança alimentar, contra 43,8% dos lares liderados por mulheres brancas (Alcantara, 2025).

O MST na Marcha das Mulheres Negras: nós sozinhas andamos bem, mas com vocês andamos melhor!

Ao longo desses 41 ano de história, o MST construiu um entendimento de que a luta pela terra no Brasil deve ser centralidade para alterar radicalmente a estrutura social excludente e desigual do país. Nas duas últimas décadas, evidenciamos a complexidade do problema agrário brasileiro e afirmamos, de diferentes formas e em diversos espaços, que o referido tema deve estar na agenda política do país e ser apreendido por todas e todos que lutam por uma sociedade emancipada, antirracista, antipatriarcal e anticapitalista.

As mulheres do Movimento Sem Terra compreendem que a luta pela Reforma Agrária Popular está diretamente ligada à transformação das relações sociais que sustentam a opressão de gênero no país. A mesma estrutura que nos faz lutar pela terra também nos leva a combater a lógica que estrutura, por exemplo, a escala 6×1, que sobrecarrega especialmente as mulheres trabalhadoras. Além disso, reconhecemos que o sistema que mantém intocável o latifúndio, concentra terras e destrói o meio ambiente — expulsando comunidades indígenas e quilombolas de seus territórios — é o mesmo que sustenta o poder patriarcal, que alimenta o feminicídio de mulheres negras, impõe a elas o trabalho doméstico não remunerado, as exclui dos espaços de decisão, aprofunda as desigualdades econômicas e perpetua o genocídio da juventude negra nas periferias do Brasil.

Com base nessa compreensão, as mulheres do MST, organizadas pelo seu Setor de Gênero e pelo Coletivo Terra, Raça e Classe, participaram da Marcha das Mulheres Negras afirmando que Reforma Agrária Popular é Reparação, reconhecendo que as mulheres avançam no exercício do esperançar e de criação de mundos possíveis, se nutrindo da ancestralidade para seguir confrontando as desigualdades sociais, raciais e de gênero. As violências que acometem as mulheres no cotidiano, sobretudo das mulheres negras, nos impelem a seguir em Marcha e nas ruas, como no último domingo, dia 07/12, nos juntando às vozes que clamaram pelo nosso direito de continuarmos vivas e existindo. Mas exige também de nós continuar nos organizando, organizando a raiva e defendendo a alegria como trincheira para criar o mundo emancipado que queremos e necessitamos.

O MST, que há 41 anos vem contribuindo com a construção da revolução popular brasileira a partir da Reforma Agrária Popular, refletindo sobre as mudanças e os desafios que o capitalismo apresenta para a classe trabalhadora do campo e da cidade, se desafia a pensar de que forma o enfrentamento ao capital e a construção das relações emancipadas exige também compreender como as violências do racismo, do patriarcado e de gênero são mobilizadas para a manutenção da reprodução da ordem do capital. Nesse sentido, na última reunião da Direção Nacional, o MST deliberou pela transformação do Grupo de Estudos Terra, Raça e Classe – que tinha por objetivo estudar a Questão Agrária e a Questão Racial – em Coletivo que passará a compor a organicidade do MST, a partir da homologação pela sua instância de Coordenação Nacional, em janeiro de 2026. Desta forma, o MST reafirma o seu compromisso com o projeto de construção de uma nova ordem social, que transforma as relações sociais e raciais em busca da emancipação das classes trabalhadoras.

Estamos e estaremos nas ruas, em Marcha, exigindo Reparação, lutando por Reforma Agrária Popular, construindo territórios e futuros; sustentando a primavera entre os dentes!

Referências

ALCÂNTARA, Fernanda. IN: Mulheres Sem Terra marcam presença na Marcha das Mulheres Negras 2025 – MST

*Simone Magalhãeé Educadora Popular, faz parte do Setor de Internacionalismo e do Coletivo Terra, Raça e Classe do MST

Foto: Fernanda Alcântara

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