Governo apresenta resposta a esse fenômeno que causa grande impacto na saúde pública. Mas põe o foco no tratamento de indivíduos e não mira nas engrenagens. Faltam medidas estruturais como restrição de publicidade e fortalecimento da RAPS
Por Filipe Asth, Deivisson Vianna Dantas dos Santos, Rebeca Freitas e Dayana Rosa, Outra Saúde
O futebol ocupa um lugar central na cultura brasileira: move multidões, influencia hábitos, permeia conversas cotidianas e se consolidou como um dos principais símbolos de identidade nacional. Mais do que um esporte, tornou-se um fenômeno social capaz de pautar debates públicos, unir torcedores de diferentes regiões e classes sociais e mobilizar a economia.
Dono da maior torcida brasileira, em 2025 o Clube de Regatas Flamengo é campeão isolado, mas dessa vez, não estamos falando do último campeonato brasileiro. O clube deve receber R$ 268 milhões de uma única empresa, segundo informações de um levantamento1 publicado no portal de notícias G1. Esse valor é o mais alto já registrado no futebol nacional e revela a ascensão avassaladora de um mercado: o de apostas online, conhecidas como bets.
O dado revela o impressionante poder econômico desse segmento que vem ganhando cada vez mais popularidade desde que foi legalizado no país, em 2018. Hoje, o Brasil já ocupa o 5º lugar no ranking mundial de mercados de apostas online. Essa escalada tem raízes em um conjunto de fatores estruturais como a regulamentação recente, a explosão do uso de smartphones e da internet e a própria força cultural do futebol no país.
A associação de empresas de apostas a grandes clubes tornou-se uma estratégia decisiva para garantir presença contínua e destacada na mente do público. Hoje não há uma partida de futebol em que o espectador não seja bombardeado por uma sequência massiva de propagandas de bets. Esse estímulo ininterrupto tem impacto direto no Sistema de Saúde brasileiro.
Um estudo2 elaborado pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e pela Umane, em parceria com a Frente Parlamentar Mista para Promoção da Saúde Mental (FPSM), revelou que os danos à saúde associados às bets podem gerar um custo de R$ 30,6 bilhões ao ano. Desse montante, R$ 17 bilhões se referem a mortes por suicídio, R$ 10,4 bilhões à perda de qualidade de vida e R$ 3 bilhões a tratamentos para depressão. O documento aponta que o crescimento acelerado do setor já provoca impactos relevantes no endividamento das famílias, além de consequente agravamento do sofrimento mental e aumento de casos de transtorno do jogo.
Além disso, aponta-se que este setor vive uma tríade: lucros elevados, arrecadação modesta e poucos empregos gerados. Contrariando a retórica de que o mercado de apostas pode dinamizar a economia e gerar empregos, dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) mostram que a contribuição do setor para o mercado de trabalho é irrisória: havia apenas 1.144 empregos formais ativos em 2024 com 60 empregadores formais. Assim, de cada R$ 291 de receita obtida pelas empresas de apostas, apenas R$ 1 se transforma em salário formal.
O governo federal tenta reagir. No início deste mês, os ministérios da Saúde e Fazenda lançaram o Observatório Saúde Brasil de Apostas Eletrônicas para ações integradas de prevenção à dependência3. Ao reconhecer que os danos provocados pelas bets extrapolam o campo fiscal e regulatório, o Estado brasileiro passa a tratar as apostas online como um problema de Saúde Pública. O acordo prevê ações como a criação de uma plataforma nacional de autoexclusão, o desenvolvimento de campanhas de prevenção, a elaboração de diretrizes clínicas para o SUS, a ampliação da produção de dados e a definição de protocolos integrados de cuidado.
Um destes protocolos foi lançado na mesma data4 e anuncia os desafios do cuidado das pessoas com uso problemático dos jogos. Temos os desafios dos territórios digitais, que nos obrigam a ampliar a lógica do cuidado para além dos encontros presenciais dentro dos consultórios. Assim, este público necessita de outras modalidades de contato para a produção de vínculos, onde práticas de escuta devem ter modelos diversos, já que a “cena de uso” tradicional de uma ação psicoativa foi substituída ou expandida para os territórios virtuais.
As medidas anunciadas pelo governo representam avanços importantes, mas ainda estão centradas no comportamento do apostador, sem enfrentar de forma estrutural as engrenagens que alimentam a expansão das bets no país. Corremos o risco de recairmos na culpabilização dos usuários dos jogos e rapidamente transformar um problema recentemente criado e ampliado em um diagnóstico estabelecido. Quando lemos tais documentos governamentais, temos a impressão de que a dependência de jogos é um fato consumado e que sempre existiu, à medida que as ações são focadas em formas de tratamento, acolhimento e identificação do problema enquanto diagnóstico. Toda a indústria que promove os jogos é esquecida.
Assim, é fundamental e necessário uma virada de chave: sair de um modelo regulatório orientado pelo mercado e de um modelo de atenção voltado apenas para o tratamento do “leite derramado”, para um modelo sanitário, que reconheça as apostas como um produto de risco e ataque suas causas sistêmicas.
Nesse sentido, medidas como (1) a proibição de publicidade, hoje um dos maiores vetores de estímulo e normalização do jogo; (2) a regulamentação e limitação do uso das plataformas de apostas; e (3) o aumento da arrecadação destinada à saúde são passos essenciais para equilibrar o impacto econômico e social desse setor.
As ações recentes sinalizam que o país começa a corrigir um atraso regulatório acumulado nesses últimos anos de expansão descontrolada. Mais do que reconhecer o problema, o desafio agora é transformar evidências em ação: estruturar uma resposta pública potente, intersetorial e contínua, que permita ao Brasil proteger sua população, especialmente jovens e famílias de baixa renda, dos impactos cada vez mais profundos das apostas online.
Bibliografia
G1. Bets fazem patrocínios de camisas do Brasileirão saltarem 125% em 2 anos e superarem R$ 1 bilhão. 4 dez. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2025/12/04/bets-fazem-patrocinios-de-camisas-do-brasileirao-saltarem-125percent-em-2-anos-e-superarem-r-1-bilhao.ghtml. Acesso em: 6 dez. 2025.
2 INSTITUTO DE ESTUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE; FRENTE PARLAMENTAR MISTA PARA PROMOÇÃO DA SAÚDE MENTAL; UMANE. A saúde dos brasileiros em jogo: análise político-econômica da regulamentação de apostas online e seus impactos para a saúde da população brasileira. 2025. Disponível em: https://ieps.org.br/saude-brasileiros-em-jogo-bets-apostas-impactos-saude/. Acesso em: 6 dez. 2025.
3Gov.br. Saúde e Fazenda lançam Observatório Saúde Brasil de Apostas Eletrônicas para ações integradas de prevenção à dependência. 4 dez. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2025/dezembro/saude-e-fazenda-lancam-observatorio-brasil-saude-e-apostas-eletronicas-para-acoes-integradas-de-prevencao-a-dependencia. Acesso em: 8 dez. 2025.
4 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Especializada à Saúde. Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. Linha de cuidado para pessoas com problemas relacionados a jogos de apostas [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção Especializada à Saúde, Departamento de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. – Brasília : Ministério da Saúde, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saes/desmad/publicacoes/linha-de-cuidado-para-pessoas-com-problemas-relacionados-a-jogos-de-apostas.pdf. Acesso em: 8 dez. 2025.
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Imagem: Créditos: João Montanaro/Revista Pesquisa Fapesp
