A defesa da Política de Manejo Florestal de Base Comunitária e Familiar (PEMFCF) é crucial, dado que aproximadamente 63% das florestas públicas no Pará se encontram em territórios de comunidades tradicionais. A iniciativa, que tem precedentes históricos desde os anos 1950 e ganhou força com o conceito de reservas extrativistas nos anos 1980, busca o fortalecimento das cadeias produtivas e a regularização fundiária e ambiental
Por Rogério Almeida, da Amazônia Real
A geógrafa Bertha Becker, especializada em geopolítica na Amazônia, em inúmeras obras enfatiza que a região é a última fronteira de expansão do capitalismo, reconhecida pelo estoque de riquezas naturais, estonteante biodiversidade, banco genético, recursos minerais e recurso hídrico. E que a condição colonial de exportadora de matéria prima ou no máximo semielaborados tem sido o principal papel exercido pela Amazônia, dentro deste processo.
A pesquisadora considera que este modelo impõe o uso intensivo dos recursos naturais, que não tem implicado na melhoria da qualidade de vida da população local. Ela alerta que enquanto não ocorrer uma grande revolução científica e tecnológica, com a ocupação da Amazônia por cientistas antes de sua destruição, tudo continuará no mesmo diapasão. Contudo, a cada ano, o orçamento das universidades definha e as condições de trabalho precarizam.
Becker, falecida aos 83 anos, em 2013, emérita professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alerta que o maior potencial da Amazônia reside na riqueza biológica. A riqueza representa o maior banco genético do planeta, contendo provavelmente 30% do estoque genético do mundo, a maior fábrica mundial de produtos farmacêuticos e bioquímicos, e a maior fonte para o conhecimento do funcionamento dos sistemas vivos e para a recombinação de genes neles contidos, base da engenharia genética, além do conhecimento dos povos locais. Como explicar uma agenda de desenvolvimento para a região que desconsidera tal potencial e detona tudo? Indagou a pesquisadora, em trecho do livro “Amazônia”.
É em direção ao horizonte oposto do saque e da pilhagem que aponta o projeto da política de manejo florestal de base comunitária. Em 2021 fiz um registro sobre a experiência para o site Brasil de Fato, do Rio Grande do Sul, onde recupero o percurso e entraves da iniciativa, como a seguir, onde constam algumas atualizações.
A Política de Manejo Florestal de Base Comunitária e Familiar
Cerca de 63% das florestas públicas do Pará encontram-se em territórios de comunidades tradicionais. A área equivale aproximadamente a 1,2 milhão de hectares, sob domínio de indígenas, extrativistas, remanescentes de quilombos, quebradeiras de coco babaçu, camponeses, e outras diversidades sociais, esclarece a minuta do documento da PEMFCF. Este é um dos principais argumentos de defesa da política, bem como os péssimos indicadores de desmatamento, assimetrias entre os sujeitos envolvidos nos acordos de plano de manejo e violência contra as populações.
A iniciativa não é nova, desde os anos 1950, – quando as políticas desenvolvimentistas de Juscelino Kubitscheck incentivaram a indústria automobilística no país e viabilizaram a construção da rodovia Belém-Brasília (BR-010) -, a Organização das Nações Unidas (ONU), preconizava a defesa de uma economia de base florestal comunitária como alternativa concreta ao desenvolvimento baseado no uso intensivo das riquezas naturais.
Já nos anos de 1980, com o assassinato do seringueiro Chico Mendes em dezembro de 1988, a iniciativa ganha grande inflexão em âmbito nacional e internacional, que vai culminar como um modelo alternativo de reforma agrária para a Amazônia. É neste momento que emerge o conceito das reservas extrativistas como um paradigma sugerido a partir dos moradores originários da floresta. É a primeira experiência política pública para a Amazônia a partir dos seus.
Neste contexto os moradores da Amazônia cunham a categoria Povos da Floresta, como representação política de defesa da floresta e de seus direitos territoriais tendo como base a diversidade social marcada por múltiplas identidades, onde temos indígenas, camponeses, extrativistas, remanescente de quilombos, quebradeiras de coco babaçu, onde a salvaguarda do território é essencial à reprodução da vida em suas variadas dimensões: política, cultural, social, afetiva, científica, religiosa, etc. Uma vida sem cercas ou constantes ameaças.
É nesta conjuntura que estados como Acre e o Amapá internalizaram o conceito de florestania, o ser humano como parte da natureza, e, não o contrário, como o fez o colonizador na construção de padrões de hierarquias de mando e obediência, em uma equação assim sintetizada: civilizado x bárbaro, produtor de conhecimento x obtuso.
Tais padrões são facilmente flagrados nas políticas públicas de desenvolvimento para a Amazônia, que possuem como regra pétrea o apagamento dos sujeitos locais, em planos, programas e cartografias. Todavia, estes sublevam-se em oposição a tais tentativas, como o fizeram os povos indígenas no início de 2025 contra os ataques à Educação do Campo promovidos pelo governador Helder Barbalho e o seu secretário de Educação à época, Rossieli Soares, mais inclinado ao mercado que à educação. Naquela conjuntura dava-se o início da COP 30 para além dos salões palacianos e de negócios corporativos.
A reivindicação de tais sujeitos manifesta-se fora do escopo do direito burguês, orientado pela lógica da propriedade privada, e, sim, a partir do direito consuetudinário, baseado nos costumes. A título de exemplo, nesta linha do direito, as quebradeiras de coco babaçu possuem o direito de coleta do coco, independente de quem seja o suposto dono da terra. Como explica o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, em vasta produção sobre o tema, ao interpretar a lei do Babaçu Livre, institucionalizada no estado do Maranhão, que integra a Amazônia Legal.
Com relação à proposta da PEMFCF no âmbito do Pará, informações do site do Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade (Ideflor-Bio), esclarecem que a proposta da política emerge como um instrumento de regulamentação dos preceitos do artigo 3 da lei estadual 6.462, de 4 de julho de 2002, a qual estabelece a Política Estadual de Florestas no Pará.
Os incisos XVI e XVIII do artigo terceiro da referida lei preveem que deve ser estimulada “a implantação de formas associativas na exploração florestal e no aproveitamento de recursos naturais da flora” e ordenadas “as atividades de manejo florestal, criando mecanismos de exploração autossustentada dos recursos florestais”. O Ideflor-Bio é a autarquia responsável pela condução do processo da PEMFCF.
Neste sentido a proposta para a política pauta-se no fortalecimento das cadeias produtivas; na regularização fundiária e ambiental para o manejo florestal comunitário e familiar; no desenvolvimento científico e tecnológico que respeite os conhecimentos tradicionais; e, por fim, na proteção das comunidades e famílias nas relações comerciais.
Maria de Nazaré Reis Ghirardi, integrante da Rede Bragantina de Economia Solidária, do nordeste do estado, adverte que existem gargalos a serem enfrentados para que a política se torne viável. “Temos inúmeros problemas, a exemplo da regularização fundiária. Muitas das vezes as comunidades estão cercadas por fazendas de gado, mineração e monocultivos, e são afetadas pelo uso do agrotóxico. A lógica da concentração da terra está diretamente ligada com o desmatamento. Isso afeta todo o entorno e as comunidades em particular” reflete Reis.
Exemplo clássico sobre o ambiente delicado a que a ambientalista faz referência pode ser notado em várias regiões no Pará. Seja na dendeicultura no nordeste do estado no entorno do município de Tomé-Açu ou no caso da expansão da soja no Baixo Amazonas, em particular nas cidades de Santarém, Mojuí dos Campos e Belterra. E, ainda no sudeste, onde a mineração em grande escala da Vale representa o principal indutor de tensões entre indígenas, camponeses e quilombolas. Tensões que se espraiam até São Luís/MA, por conta da duplicação da Estrada de Ferro de Carajás e outras estruturas. A Vale é ombreada pela pecuária extensiva, o que o professor Jean Hébette denomina de fronteira agromineral.
O doutor pela Universidade da Carolina do Norte e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Amazônia Oriental, Milton Kanashiro, que tem participado do processo de debate sobre a PEMFCF, manifesta-se frustrado com a demora na efetivação da política. “O decreto tornaria o processo mais ágil”, desabafa o pesquisador. Entre as muitas atividades na Embrapa, Kanashiro exerceu a coordenação do Programa de Pesquisa do Comitê dos Sistemas de Produção Florestal e Agroflorestal
Ao contrário do servidor da Embrapa, o técnico da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), Wendell Andrade de Oliveira, defende a efetivação da PEMFCF a partir de um projeto de lei, posto assim garantir a continuidade da mesma, e não via decreto. “Na condição de servidor público, o mais interessante é o projeto de lei. Desta forma a lei blinda revogações por conta da alternância do poder”, argumenta o coordenador da Diretoria de Planejamento Estratégico e Projetos Corporativos da Semas.
Oliveira acredita que a política representa uma possibilidade na redução do desmatamento no estado. “O debate em torno da bioeconomia converge com os princípios defendidos na minuta do projeto da PEMFCF, o que nos coloca no campo de possibilidades”, argumenta.
Ele alerta para um gargalo com relação ao pacto federativo, uma vez que boa parte do território do estado é tutelado pela União, medida tomada durante a ditadura civil-militar em 1971, por meio do Decreto Lei 1.164, durante o período Médici, que federalizou boa parte do território da Amazônia. No caso do Pará, perto de 70%. Médici é considerado o mais violento ditador e nomeia uma cidade no estado, Medicilândia, notabilizada pela produção de cacau. E por refúgio de Darci Alves Pereira, o “Pastor Daniel” assassino confesso de Chico Mendes. No município ele presidiu o PL.
Com relação ao papel do Estado no assunto, o gerente de certificação florestal do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), Leonardo Martin Sobral reflete que, “o papel do Estado é fundamental seja como facilitador ou elaborador da política, seja na dinamização em agrupar os diferentes sujeitos interessados no tema, e, em viabilizar algo adequado para a realidade das pessoas que vivem na floresta, e que dependem do manejo para a sua sobrevivência”.
O pesquisador acredita que a política é fundamental para o ordenamento da atividade no estado, que tem boa parte de seu território definido como reservas extrativistas, territórios quilombolas e projetos de assentamento onde é possível o manejo florestal madeireiro e não madeireiro.
“Estes territórios vivem sob constante ameaça de roubo de madeira, desmatamento e grilagem. Uma política estadual que ordene a atividade representa uma ação estratégica na redução do desmatamento e possibilita oportunidades de renda, formação profissional das populações, além de evitar ações criminosas de garimpos e outros setores”, ressalta Sobral.
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Atividades de manejo florestal, em Almerim, PA, em áreas de concessão pertencentes à Floresta Estadual do Paru, em 2015 (Foto: Ascom Ideflor).
