SC: A identidade branca como política de Estado. Por Marlon Ricardo de Amorim

O projeto aprovado não é um equívoco técnico nem um debate legítimo sobre políticas públicas. É uma tomada de posição política clara em defesa da preservação de privilégios raciais historicamente construídos neste estado

Santa Catarina voltou ao centro do debate nacional ao aprovar, na Assembleia Legislativa, um projeto que extingue as cotas raciais nas universidades estaduais e ainda prevê punições financeiras às instituições que insistirem em mantê-las. A medida, que aguarda sanção do governador, é apresentada por seus defensores como defesa da igualdade e do mérito. Mas, observada à luz da história e da formação social do estado, revela outra coisa. Não se trata de neutralidade, modernização ou justiça. Trata-se de uma escolha política consciente, que reafirma uma tradição catarinense de proteção de privilégios raciais, agora atualizada sob a linguagem técnica da legalidade e da eficiência administrativa.

Falo como alguém branco, nascido e formado em Santa Catarina. Não falo por culpa moral nem por virtude individual, mas por responsabilidade histórica. O projeto aprovado não é um equívoco técnico nem um debate legítimo sobre políticas públicas: trata-se de uma tomada de posição política clara em defesa da preservação de privilégios raciais historicamente construídos neste estado.

O fim das cotas raciais para grupos historicamente marginalizados – e não para os brancos – não me prejudica diretamente. Pelo contrário, preserva uma ordem que sempre me foi favorável. É justamente por isso que é preciso nomear o que está em jogo.

É tendo consciência do apagamento racial e social, da maior facilidade de acesso às oportunidades e do reconhecimento dos benefícios que atravessam a minha identidade enquanto trabalhador branco que escrevo este texto, indignado diante de um projeto político que insiste em manter o acesso ao conhecimento, ao poder e à mobilidade social racialmente delimitados.

Quando uma maioria de deputados, sobretudo homens, brancos e católicos, decide atacar as cotas raciais, não está lidando com abstrações identitárias, mas retirando direitos concretos de pessoas concretas. Segundo o Censo 2022 do IBGE, Santa Catarina tem 1.772.896 pessoas negras, sendo 309.908 pretas e 1.462.988 pardas, o que corresponde a 23,29% da população do estado. Além disso, vivem em Santa Catarina 21.773 pessoas indígenas, pertencentes a povos historicamente violentados e ainda hoje excluídos do acesso pleno a direitos. São, portanto, quase 1,8 milhão de pessoas negras e mais de 20 mil indígenas diretamente afetados por uma decisão política que reafirma a exclusão no acesso ao ensino superior público.

Santa Catarina gosta de se apresentar como terra do trabalho, do mérito e da eficiência. Essa narrativa, repetida à exaustão, esconde um dado fundamental. O Estado catarinense nunca foi neutro racialmente. Ao contrário. Desde o final do século dezenove, investiu pesadamente em políticas públicas de cotas para brancos de incentivo à imigração europeia, distribuição de terras, crédito, infraestrutura e proteção institucional para colonos brancos, enquanto negava sistematicamente esses mesmos recursos à população negra recém liberta e aos povos indígenas.

Não houve acaso nem simples dinâmica econômica. Houve projeto. Um projeto explícito de branqueamento populacional, de ocupação territorial racializada e de produção de uma identidade regional assentada na exclusão. Enquanto famílias europeias brancas recebiam terras, apoio estatal e reconhecimento simbólico, pessoas negras eram empurradas para o trabalho precarizado, expulsas de áreas centrais, criminalizadas e mantidas fora da escolarização formal. Esse é o ponto de partida real da chamada meritocracia catarinense.

A população indígena em Santa Catarina carrega até hoje as marcas de um genocídio que nunca foi devidamente reconhecido nem reparado. No estado a violência contra os povos indígenas não é capítulo encerrado, mas estrutura permanente. Xokleng Laklanõ, Kaingang e Guarani seguem enfrentando os efeitos de um processo histórico de expropriação territorial e apagamento institucional que sustentou a colonização do estado. Dos massacres sofridos pelos Xokleng no Vale do Itajaí à expulsão dos Kaingang no Oeste e aos conflitos fundiários vividos pelos Guarani no litoral, o que se mantém é a negação contínua do direito ao território e à existência plena. As disputas atuais, como a luta Xokleng que chegou ao debate nacional sobre o marco temporal, evidenciam que o Estado ainda opera segundo a lógica de escolher quem pode permanecer e quem deve ser removido. Ignorar essa história ao atacar políticas afirmativas é reafirmar o mesmo projeto de exclusão que moldou Santa Catarina desde sua origem.

Há ainda uma ausência gritante no debate público sobre a memória deliberadamente apagada do caboclo. Figura central na formação social do estado, o caboclo de Santa Catarina foi sistematicamente deslegitimado como sujeito histórico. Nem europeu suficiente para ser celebrado pela narrativa do progresso, nem indígena reconhecido como povo originário com direitos assegurados, o caboclo foi tratado como obstáculo ao desenvolvimento. Sua existência foi associada à preguiça, ao atraso e à desordem, enquanto políticas públicas e projetos de modernização avançavam sobre seus territórios, sua cultura e seus modos de vida.

Guerra do Contestado é o episódio mais brutal dessa exclusão. Ali, o Estado brasileiro decidiu exterminar física e simbolicamente populações caboclas em nome da ordem, da propriedade privada e do capital estrangeiro. Após a guerra, o que se seguiu não foi reparação, mas silenciamento. Terras foram entregues a empresas e colonos europeus, enquanto os sobreviventes caboclos foram empurrados para a marginalização, sem acesso à terra, à escola ou ao reconhecimento.

É nesse contexto que as cotas raciais surgem, mais de um século depois, como uma tentativa mínima de correção histórica. Não criam privilégios. Tentam mitigar desigualdades produzidas pelo próprio Estado. Ao proibi-las, a Assembleia Legislativa catarinense não está defendendo igualdade. Está reafirmando uma desigualdade já existente e profundamente naturalizada. E o que o estado faz, por meio do seu legislativo, é proteger o que sempre protegeu, a identidade branca em detrimento da marginalização das populações negras e indígenas que foram historicamente exploradas socialmente, economicamente e politicamente.

Em Santa Catarina, o debate racial inaugurou também uma clivagem interna entre o branco e o branquíssimo. Embora o estado seja marcado por uma maioria branca, essa branquitude nunca foi homogênea nem igualmente valorizada. Ao longo da formação social catarinense, estabeleceram-se hierarquizações internas entre europeus considerados mais desejáveis e outros classificados como inferiores ou menos civilizados. Italianos, açorianos, caboclos embranquecidos e outros grupos foram, em diferentes momentos, alvo de estigmatização, controle social e exploração do trabalho, ainda que permanecessem situados acima da população negra e indígena na escala racial construída pelo Estado.

Essa lógica produziu uma espécie de sistema de castas raciais à brasileira, no qual a proximidade com o ideal do branco europeu do Norte definiu acesso a terra, prestígio, escolarização e poder político. Mesmo grupos brancos que sofreram discriminação foram progressivamente incorporados à branquitude dominante à medida que se distanciavam simbolicamente de negros e indígenas. O resultado foi a reprodução de uma estrutura racial profundamente desigual, sustentada não apenas pela exclusão direta, mas pela promessa de ascensão simbólica dentro da própria branquitude.

É nesse terreno que se atualiza hoje a resistência às políticas afirmativas: não como defesa abstrata da igualdade, mas como medo de fissura em uma hierarquia racial que sempre organizou quem pode avançar e quem deve permanecer no limite, a partir de um olhar profundamente etnocêntrico. O que vemos hoje em Santa Catarina é a atualização desses mesmos mecanismos. O discurso contra as cotas mobiliza a ideia de mérito, legalidade e igualdade abstrata, enquanto preserva silenciosamente o salário racial em um tecido social profundamente hierarquizado. Mesmo quando isso significa restringir o acesso à universidade pública, um bem coletivo, a parcelas da população que historicamente já foram excluídas dela.

Não é coincidência que pesquisas eleitorais revelam recortes raciais persistentes no apoio a projetos políticos no estado, com uma maioria que vota em candidatos homens, brancos e conservadores.

A resistência às políticas redistributivas e afirmativas para pessoas negras e indígenas em Santa Catarina não é apenas ideológica. É racialmente estruturada. E os representantes políticos do estado, em sua maioria, quando atacam as políticas afirmativas para pessoas que não são brancas, representam também a mobilização de uma maioria também branca que luta para proteger o racismo e os benefícios raciais construídos às custas da exploração racial.

A defesa contemporânea da identidade branca não se dá mais, na maioria das vezes, por declarações abertamente racistas, mas por meio de um ressentimento racial acomodado em um discurso de meritocracia e de zelo institucional, político, histórico e social pela memória de um pioneirismo branco, europeu e higienizado. Quando setores brancos passaram a perceber que a universidade pública deixava de ser um espaço quase exclusivo de reprodução de si mesmos, ela se tornou alvo. Não por acaso, foi no momento após a instituição da política afirmativa de cotas nas universidades que movimentos extremistas passaram a ocupar corredores, vigiar professores, denunciar conteúdos críticos e atacar políticas de diversidade. O incômodo nunca foi com a qualidade do ensino, mas com a quebra de uma fronteira racial historicamente protegida.

A presença negra e indígena nas universidades brasileiras produziu uma transformação profunda e mensurável. As políticas de cotas ampliaram o acesso, diversificaram agendas de ensino, pesquisa e extensão e romperam silêncios históricos e colocaram em circulação saberes antes sistematicamente deslegitimados. Dados reiterados mostram aumento de permanência, conclusão de cursos e produção científica entre estudantes cotistas. Mais do que números, houve uma revolução simbólica. A universidade deixou de ser apenas espaço de reprodução da elite branca e passou a refletir, ainda que de forma incompleta, a sociedade brasileira, que é de maioria negra.

Negar esse processo não é ignorância. É uma escolha política. Ao atacar cotas raciais, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina se declara, ainda que não o admita, defensora de uma política de ação afirmativa para brancos. Porque negar a necessidade de políticas específicas para pessoas negras e indígenas significa defender que as oportunidades existentes continuem sendo apropriadas majoritariamente por quem sempre teve acesso a elas. Significa naturalizar uma desigualdade produzida historicamente pelo próprio Estado e proteger as oportunidades às populações brancas em Santa Catarina. O projeto aprovado não é neutro, nem técnico, nem moderno. É uma reação política à democratização do acesso ao conhecimento.

A universidade pública não é um espaço abstrato. Ela reflete a sociedade que a produz. Extinguir cotas raciais em Santa Catarina não é um gesto de modernização nem de justiça. É a reafirmação de um passado que nunca foi superado. Um passado em que o Estado escolheu quem merecia futuro e quem deveria permanecer à margem.

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Marlon Amorim é bacharel em Direito, servidor da Justiça Federal, educador popular em Direitos Humanos, membro do GT de Direitos Humanos do TRF4 e do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Blumenau.

Referências

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