Herlon Bezerra: “Natal na Neve” no Sertão pernambucano? É racismo ambiental e religioso

“É um Natal sem África e sem Sertão, como se Deus só pudesse nascer num cartão-postal europeu.”

Brasil de Fato

Querida gente leitora do Brasil de Fato Pernambuco, esta conversa continua a anterior, Cristianismo: uma religião de matriz africana. Ali, propus que “num país erguido sobre o trabalho escravo e o racismo, urge um cristianismo descolonizado, capaz de reconhecer-se religião de matriz africana”, abrindo caminho para uma conversão antirracista e ecossocialista, que abandone a fé usada como arma contra o povo e abrace uma fé aliada das lutas por justiça”.

Se levamos isso a sério, a pergunta que resta é: o que essa conversão significa quando saímos da teoria e entramos no chão da cidade, do orçamento público, da forma como, por exemplo, o poder estatal organiza a festa de Natal?

Afinal, quando reconhecemos que o cristianismo é uma religião de matriz africana, não estamos apenas discutindo ideias, mas nos referindo à concretude de corpos, territórios e classe: corpos negros, indígenas, sertanejos, de pessoas trabalhadoras; territórios de Caatinga, de convivência com o semiárido, de bairros periféricos que sustentam a cidade com seu trabalho extenuante e mal pago.

Segundo denúncias do vereador professor Gilmar Santos (PT), somente com a decoração natalina deste ano o município investiu quase R$ 5 milhões, ao mesmo tempo em que bairros populares relatam até três meses sem água nas torneiras. “O povo pedindo água e o prefeito dizendo que vocês estão precisando é de neve”, ironizou o vereador.

Se observarmos de modo mais cuidadoso essa situação, perceberemos que não estamos diante de uma ornamentação inocente da cidade. Trata-se de uma catequese pública de tonalidade racista, ambientalmente injusta, financiada com recursos produzidos por uma população de ampla maioria negra.

O sociólogo peruano Aníbal Quijano chama isso de colonialidade do poder: mesmo após o fim formal do colonialismo, o mundo segue organizado por uma hierarquia racial que toma o branco europeu como medida de humanidade. É também a colonialidade do imaginar, que define quais corpos, culturas e climas podem parecer “normais”.

À luz disso, o “Natal na Neve” é um dispositivo de colonialidade climático-ambiental, ensinando-nos a desejar como ideal justamente o tipo de mundo que historicamente nos escravizou e explorou. A cada noite desse Natal Luz, milhares de crianças aprendem, sob luzes e selfies animadas, que o “Natal bonito” é aquele que se parece com outro clima, outro lugar, outra cor que não a sua.

E, não à toa, a referência apontada ao imaginário popular é a europeia, justamente aquela que encabeçou o projeto colonial e escravista sobre nossos povos. Enquanto isso, a Caatinga, o Velho Chico, os terreiros, os bairros periféricos, os assentamentos e a convivência com o semiárido somem da cena principal.

Quando reconhecemos a matriz afro-asiática do Cristianismo e damos passos firmes para descolonizar a fé, fica evidente que Jesus e seu nascimento nada têm a ver com esse ciclo de manutenção da opressão. Falar em colonialidade do ser, como Quijano, é lembrar que essa lógica entra na pele, na alma, no modo como nos percebemos.

Os racismos ambiental e religioso se encontram exatamente aí: embranquecem Jesus, apagam suas raízes afro-asiáticas e ocupam imaginariamente nossos territórios, cobrindo o Sertão com uma neve cenográfica que tenta esconder a cidade real.

O racismo religioso não se expressa aqui, portanto, somente nos inaceitáveis ataques às casas de axé e na demonização explícita de orixás e entidades das religiões de matriz afro-ameríndia. Ele também aparece na decisão de ocupar o coração da cidade, na principal festa cristã do calendário, com um modelo de espiritualidade higienizada: um Cristo de bochecha rosada, trilha sonora neutra, sem tambor nem atabaque, sem canto de terreiro, sem a presença simbólica de comunidades negras e indígenas.

É um Natal sem África e sem Sertão, como se Deus só pudesse nascer num cartão-postal europeu.

O racismo ambiental, por seu turno, se expressa aqui na forma como se decide quem tem direito ao embelezamento urbano e quem fica com a parte pesada da conta. Em uma cidade de cerca de 390 mil habitantes, mais de 91 mil pessoas não são atendidas por serviços de água e cerca de 129 mil não têm esgotamento sanitário adequado.

Enquanto o centro turístico ganha neve artificial e segurança reforçada, as periferias seguem com esgoto a céu aberto e dificuldade de acesso à água. A cidade que se vende como “magia do Natal” é a mesma em que muitas famílias não têm garantido o pão e o saneamento básicos.

Essa crítica não é somente sociológica: ela é também profundamente teológica.

O Conselho Mundial de Igrejas, em sua mensagem de Natal de 2024, lembra que celebramos o nascimento de Jesus como encarnação de Deus e da nossa dignidade, chamando-nos a buscar a paz com justiça. Natal, para o movimento ecumênico global, não é tempo de anestesia fantasiosa: é convocação à justiça concreta.

Nesse mesmo sentido, as Cinco Marcas da Missão Cristã, segundo proposto pela Comunhão Anglicana, nos chamam a, além de anunciar as boas novas do Reinado de Cristo e formar novos discípulos, responder à necessidade humana com serviço amoroso, transformar estruturas injustas, desafiar a violência e salvaguardar a integridade da criação.

Se essa é nossa medida, então um Natal pago com dinheiro público para embranquecer a paisagem, ele naturaliza desigualdades e ignora a convivência com o Semiárido. Este Natal não está em sintonia com a missão de Cristo, por mais “emocionante” que pareça na propaganda oficial.

A teologia da libertação ecossocialista (em vozes como Leonardo Boff, Ivone Gebara e Marcelo Barros) insiste que o grito da terra e o grito dos pobres são um só. Quando o modelo de cidade transforma a natureza em mero cenário e o povo em plateia, sem reconhecer sua dignidade humana e ambiental, fere ao mesmo tempo a criação e as pessoas crucificadas da história.

Portanto, como lembra James Cone em seu livro Uma Teologia Negra da Libertação, não existe Evangelho neutro diante da opressão: “Qualquer mensagem que não se relacione com a libertação dos pobres na sociedade não é mensagem de Cristo. Qualquer teologia indiferente ao tema da libertação não é teologia cristã”.

Um cristianismo que não enfrenta o racismo esvazia a própria cruz do Nazareno e trai o apelo concreto do Evangelho segundo Mateus (25, 35-36): “tive fome e me destes de comer… estava nu e me vestistes”.

Observemos as narrativas bíblicas do Natal. Lucas conta que quando chegou a hora do parto “não havia lugar para eles na hospedaria” (Lucas 2,7): o Filho de Deus nasce na margem do sistema. Mateus (2, 13-15) mostra a Sagrada Família fugindo para o Egito, migrante forçada pela violência de Herodes. João resume: “o Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós” (João 1,14). Não há neve nem chalé alpino, mas corpo vulnerável e tenda armada no meio do povo.

Trazendo esse Evangelho para o Sertão Pernambucano em 2025, percebemos como é difícil admitir o Menino de Belém num projeto de Natal que cobre a cidade com símbolos ambientais sem relação com nossa história e desvia o olhar das feridas reais do território.

Muito mais próximo da manjedoura está o povo que pega ônibus lotado, mora em rua sem saneamento, luta por escola e posto de saúde e vive a espiritualidade em terreiros, igrejas periféricas, comunidades ribeirinhas, ocupações urbanas e assentamentos da reforma agrária popular.

Mandatos como o do vereador Professor Gilmar Santos (PT) vêm denunciando, há anos, na Câmara Municipal de Petrolina, a desproporção entre os recursos investidos em grandes eventos festivos e o investimento em direitos básicos, igualdade racial, liberdade religiosa e convivência com o Semiárido.

Se acharmos “normal” gastar milhões com neve artificial enquanto falta saneamento, habitação e transporte digno, estaremos escolhendo um lado na luta de classes e na disputa de projetos de fé. Estaremos do lado que semeia racismo e violência ambiental e religiosa.

Não se trata, meu povo, de culpar quem leva suas crianças para ver luzes, tirar foto na Dom Malan ou encantar-se com a música filarmônica. A alegria do povo é sagrada, como Jesus sabia ao transformar água em vinho (João 2,1-11). O alvo de nossa conversa é outro: o projeto de cidade e de religião que, por trás de palavras como “magia” e “encanto”, reafirma um modo de vida que sacrifica a terra e os pobres, branqueia o imaginário cristão e transforma o Semiárido em cenário explorável e exportável, não em casa amada.

A celebração de Natal coerente com a mensagem cristã de um Deus que se esvaziou de si mesmo para morar ao nosso lado (Filipenses 2,5-11; João 1,14) e que, sendo rico, se fez pobre para que superássemos toda forma de empobrecimento (2 Coríntios 8,9), ela pede um cenário bem diferente.

Essa celebração deveria ter um presépio com Maria e José de pele retinta e roupas nordestinas; um Menino Jesus com um rosto no qual possam se ver as crianças de nossas periferias; uma ambientação que celebre a Caatinga, o Velho Chico e a convivência com o semiárido; uma programação que coloque no centro artistas populares, comunidades de fé e movimentos de luta por direitos. E, mais do que tudo, um orçamento público municipal que traduza em prática as palavras de Isaías (58): romper as correntes injustas e repartir o pão com quem tem fome.

Que este Natal seja tempo de discernir espíritos: de um lado, o “espírito natalino” do marketing, da neve cenográfica, do racismo ambiental e religioso travestido de festa; e de outro, o espírito de Jesus, que se encarna em corpos vulneráveis, territórios feridos e lutas concretas por justiça.

E que a força do Deus que se fez criança nos liberte da fantasia de um “Natal na Neve” por meio da coragem de organizar, no Sertão, um Natal de terra, água, pão, direitos e dignidade.

Oremos, juntas, com os pés na política e o coração na esperança.

Deus da vida, Jesus de Belém,
desmascara em nós e na nossa cidade
todo racismo, ambiental e religioso,
toda festa que esconde a dor dos pobres,
toda fé que se vende ao poder.
Faz de nós povo em mutirão,
capaz de defender a Caatinga,
de proteger os terreiros,
de lutar por políticas públicas justas,
de celebrar um Natal
em que ninguém fique de fora da mesa.
Amém, Axé, Awerê, Aleluia!

*Reverendo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Professor de Psicologia do IF Sertão em Petrolina.

Prefeito Simão Durando (União Brasil) posa em frente à decoração de Natal de Petrolina em 2025. Crédito: Prefeitura de Petrolina / Divulgação

 

 

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