Flint é apontada como cidade símbolo de ‘racismo ambiental’ nos EUA

AFP/Notícias UOL

Flint, Estados Unidos, 7 Mar 2016 (AFP) – O escândalo da água contaminada com chumbo na cidade de Flint, no estado americano de Michigan teria ocorrido se seus moradores fossem brancos e ricos?

Os aspirantes presidenciais democratas Hillary Clinton e Bernie Sanders fizeram essa delicada pergunta no domingo, quando invocaram este desastre ambiental para criticar a mesquinharia das autoridades de Michigan (norte) ao tomar decisões sobre esta cidade que um dia conheceu a prosperidade da indústria automobilística norte-americana.

Os rivais políticos se uniram para criticar ao governador republicano de Michigan, Rick Snyder, exigindo sua renúncia.

Os dois pré-candidatos concordaram que a abandonada rede de distribuição de água potável de Flint, carcomida pela corrosão, precisa ser reparada.

Eles propuseram maior ação do governo federal e pediram uma prestação de contas.

“O que ouvi e o que vi literalmente me destroça, e é que não dá para acreditar que as crianças de Flint, Michigan, nos Estados Unidos da América, em pleno 2016, estejam sendo envenenadas”, disse Sandres durante o debate transmitido pela rede de televisão CNN.

Sanders pediu a reconstrução da “combalida infra-estrutura” das redes de água potável, plantas de tratamento de águas poluídas, caminhos e pontes dos Estados Unidos.

Já Clinton disse que o estado deveria enviar “imediatamente” dinheiro para ajudar Flint.

Os dois pediram reformas nas redes de água potável de Flint, carcomidas pela corrosão, e condenaram as medidas de redução de custos de Snyder, que levaram mais de 8.000 crianças a ingerirem chumbo diariamente.

Mas os dois aspirantes presidenciais também enviaram fortes mensagens para a comunidade negra de Flint, e mais além, à população negra dos Estados Unidos, que sofre injustiças econômicas e sociais em qualquer lugar do país.

Alguns estão dizendo que o escândalo de Flint é um exemplo de “racismo ambiental”. A expressão tem sido usada nas últimas décadas para descrever como os americanos negros estão desproporcionalmente expostos aos contaminadores do ar, da água e da terra.

– Legado de segregação -A segregação pode ter sido abolida legalmente em todo o país em 1964, um século depois da Proclamação da Emancipação, mas os negros ainda tem em média menor renda e piores condições de vida que os brancos.

“A comunidade negra dos Estados Unidos, em toda a nação, sempre esteve desproporcionalmente representada nas áreas tóxicas”, disse Laura MacIntyre, da Universidade de Michigan em Flint.

“A maioria das pessoas que vive e condições mais precárias, por estarem perto de áreas contaminadas ou próximas de fábricas e todo tipo de lugares que têm dejetos tóxicos ou perigosos são comunidades predominantemente negras e Flint não é uma exceção”, afirmou.

“Este é um tema racial em termos do fato de que temos que lidar com ele de forma não proporcional”, disse.

Estas desigualdades foram similarmente ilustradas após a devastação que o furacão Katrina causou em Nova Orleans em 2005.

Após perder quase metade de sua população e quase toda sua indústria automobilística, Flint tem agora cerca de 100.000 habitantes, 57% negros e quase metade dos habitantes vive na pobreza.

Um recente estudo concluiu que a porcentagem de crianças com elevados níveis de chumbo no sangue aumenta “particularmente em comunidades em desvantagem sócio-econômica”.

O estudo destacou que a estrutura precarizada favoreceu que mais crianças estivessem expostas ao chumbo através da água potável.

Flint tem os maiores números de casas desocupadas nos Estados Unidos, com 7,5% das casas vazias, segundo um relatório da RealtyTrac.

Este número é cinco vezes maior que a média nacional, de 1,6%.

A situação é inclusive pior ao norte de Flint, onde estão os principais bairros habitados por maioria negra. Algumas ruas estão completamente desertas, com as casas fechadas ou em estado precário.

– “As vidas importam” -“Perdemos muitas escolas, não sei nem dizer quantas escolas, e vocês veem como a situação da água foi ignorada (…). Isso não teria acontecido num bairro de brancos”, apontou Charles Marion, pai de três filhos.

Este é um tema que Clinton, que tem uma forte base eleitoral na comunidade negra, repetiu recentemente.

“Se a mesma coisa que está acontecendo em Flint tivesse acontecido em Grosse Pointe ou Bloomfield Hills, acredito que todos sabemos que isso teria sido solucionado ontem”, comentou Hillary, em alusão aos subúrbios ricos de Detroit.

Os ativistas de direitos civis também estão preocupados com o caso.

Durante a cerimônia do Oscar há uma semana, em meio a uma polêmica sofre a falta de diversidade em Hollywood, Flint organizou um show pelos direitos humanos, chamado “Justiça para Flint” – e Stevie Wonder foi a estrela da noite.

Inspirada no movimento de protesto “Black Lives Matter” (“A vida dos negros importa”, em inglês) por conta da violência policial contra pessoas negras, a frase “As vidas de Flint importam” se espalhou pelos protestos e pelas redes sociais.

“A crise da água em Flint” se inscreve no marco da “violência contra as pessoas negras”, diante da impavidez das agências governamentais e dos políticos, disseram os líderes do movimento “Black Lives Matter”, num “comunicado de solidariedade”.

“Um desastre feito pelo homem, a crise da água é uma explícita e indignante forma de violência estatal, que impacta da maneira mais dura as pessoas negras de poucos recursos”, disseram.

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