Confira abaixo o ofício encaminhado para a Presidência da República, com cópia para: Ministério da Justiça, Casa Civil, Secretaria de Governo – Presidência da República, Partido Comunista do Brasil – PC do B, Fundação Nacional do Índio – FUNAI e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.
Ofício nº 016/2016/ABA/PRES
Senhora Presidente,
A Associação Brasileira de Antropologia vem manifestar seu protesto, sua indignação e sua perplexidade diante do depoimento prestado pelo Exmº Sr. José Aldo Rebelo Figueiredo, ex-Ministro-chefe da Secretaria de Coordenação Política e Relações Institucionais , ex-Ministro dos Esportes, ex-Ministro da Ciência Tecnologia e Informação, e atual Ministro da Defesa do Brasil, em depoimento voluntário na Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) na demarcação de terras indígenas e de remanescentes de quilombos, no dia 30/03/2016.
O depoimento do Exmº Sr. Ministro é marcado por um tom de suposta denúncia, além de inúmeros equívocos eivados por preconceitos que frequentavam nosso ensino fundamental há longo tempo atrás, e que em tudo foram criticados e ultrapassados pelas Ciências Sociais e pelos movimentos indígenas, sendo as propostas da Base Nacional Comum Curricular, ora posta em consulta pública pelo Ministério da Educação, a melhor prova da dissonância significativa entre as posições do Ministro e os conteúdos reais de outras políticas públicas.
É um exemplo particularmente evidente dessa postura ultrapassada pela própria administração pública republicana o desconhecimento do que seja a Antropologia como ciência e daquela feita no Brasil. Em função dessa evidente limitação da informação, o Exmº Sr. Ministro tarja de modo impreciso uma “vertente” da Antropologia como responsável por estabelecer um “…abismo entre a sociedade nacional, o Brasil e as populações indígenas, contrapondo a ideia de segregação à ideia de integração ” (trecho do depoimento)1.
O que o Exmº Sr. Ministro parece não considerar são os direitos consagrados aos Povos Indígenas na Constituição de 1988, em particular inscritos nos artigos 231 e 232, nos quais o direito à diferença sociocultural, e aos direitos originários dos indígenas às terras por eles tradicionalmente ocupadas estão petrificados. Nesses artigos a Constituição põe por terra a ideia genérica de integração, sem que isso signifique defender segregação.
É em função desses direitos que os antropólogos, como cientistas e técnicos, foram chamados a participar dos processos de seu reconhecimento pelo Estado brasileiro, realizando um trabalho pericial que inaugura um longo trâmite administrativo, cuja responsabilidade última escapa -lhes integralmente às mãos, já que outros técnicos intervêm na preparação do que segue à Presidência da Funai, ao Ministério da Justiça e à Presidência da República para as deliberações compatíveis, decisões portanto das mais altas esferas do Poder Executivo, a quem pertence sua responsabilidade real e última. Do mesmo modo, poderíamos argumentar para o caso da definição de territórios quilombolas. Tal fato, que vem sendo sistematicamente obliterado pela condução da referida CPI, é igualmente ausente da narrativa do Exmº Sr. Ministro.
Protestamos, portanto, contra a ignorância interessada, que leva a conferir à Antropologia (seja em que vertente for), aos antropólogos e às antropólogas, um lugar numa trama imaginária contra a Nação Brasileira. Essa imagem prefere desconhecer que a ação tópica dos antropólogos no reconhecimento de direitos territoriais indígenas se faz, portanto, consoante processos jurídico-administrativos sancionados pela Legislação Brasileira, e também em função de outros diplomas legais, bem como normativas administrativas. Escolher atacar a Antropologia é iludir o fato de que em última instância o ataque feito é às instituições brasileiras, à responsabilidade das altas esferas do Executivo, em especial da Presidência da República, a quem o Exmº Sr. Ministro se reporta, e à Constituição Brasileira.
Assim, acompanhamos o referido depoimento com perplexidade e preocupação diante da clara incompatibilidade entre a postura do Exmº Sr. Ministro, em especial pela importância da pasta da Defesa, e as declarações expressas por Vossa Excelência quando do encerramento da I ª Conferência Nacional de Política Indigenista, ocorrida em 17 de dezembro de 2015. A defesa da democracia e do Estado de Direito só encontrará lugar real quando se reconhecer o direito à diversidade e à pluralidade identitária, de acordo com o novo modelo de Nação inaugurado com a Constituição de 1988, e contemplado em inúmeras políticas públicas de Estado e de governo; só quando se tiver como princípio a atenção a demandas etnicamente diferenciadas é que o combate à desigualdade será plenamente condizente com a realidade brasileira.
Esperamos que tal dissonância entre as posições que vemos emanar do mais alto comando da República e as expendidas no referido depoimento possam ser corrigidas, e que tal correção se faça pública.
Sendo tudo para o momento, nos despedimos e nos colocamos à disposição para quaisquer esclarecimentos e contribuições que se façam necessários.
Atenciosamente,
Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima
Presidente da ABA (Gestão 2015/2016)
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Nota:
1-Disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/55a-legislatura/cpi-funai-e-incra/videoArquivo?codSessao=55870&codReuniao=43217