Por Renato Santana, Cimi
A fumaça branca encobre o Monte Pascoal, na Bahia. Cabral não veria a fisionomia atlântica do monte, fosse hoje. Algo queima, aos montes, nas proximidades da aldeia Alegria Nova. “São os fazendeiros transformando a floresta em pasto. Vamos ver de cima”, diz o cacique Mandy Pataxó, antes de ajeitar a escada no rumo de uma caixa d’água vazia, uns sete metros acima, posta num tablado de madeira rústica.
Do alto se vê as cercas separando o Parque Nacional do Descobrimento (PND), área de conservação ambiental, de uma fazenda, onde um pedaço de Mata Atlântica queima num incêndio contido – a não ser pela fumaça desgarrada. O parque e a fazenda se sobrepõem à Terra Indígena (TI) Comexatiba, do povo Pataxó, identificada em 2015 pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O Monte Pascoal se encontra nos limites da Terra Indígena Barra Velha, também Pataxó.
Embora o governo federal tenha reconhecido como tradicional a terra Comexatiba, antiga Cahy-Pequi, um órgão do próprio governo tem criado impedimentos à permanência dos indígenas na terra, além de fazendeiros e grupos interessados na exploração das áreas para a construção de resorts. O Instituto Chico Mendes de Conservação Ambiental (ICMBio), administrador do Parque Nacional do Descobrimento, tem entrado com sucessivos pedidos de reintegrações de posse contra os Pataxó de Comexatiba.
Em julho do ano passado, o ICMBio ingressou com duas ações de reintegração. Os procuradores do Instituto, vinculados à Advocacia-Geral da União (AGU), alegavam que a Funai não teria publicado o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação do território Pataxó.
A Justiça Federal concedeu as liminares para o despejo sob o argumento de que o órgão indigenista havia pactuado o relatório para dois anos antes. Se o relatório fosse publicado, as liminares seriam suspensas. No dia marcado para as ações de despejo, o Ministério da Justiça publicou o relatório e os Pataxó respiraram aliviados – por pouco tempo.
“O que a gente imaginava é que, finalmente, a Funai tinha cumprido com o acordo e o ICMBio e o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], que também solicitou reintegrações por ter lotes da reforma agrária em nossas terras, não mais nos incomodariam. Que se podia fazer uma gestão envolvendo os Pataxó e o ICMBio, mas não querem conversar com a gente e tentam nos tirar pra viver em Prado, em Cumuruxatiba, como mendigos”, explica Candara Pataxó.
O ICMBio entrou com outras três reintegrações, apenas neste ano. A alegação é de que os Pataxó estariam devastando a porção de Mata Atlântica preservada pelo Parque Nacional do Descobrimento. No entanto, além das queimadas constantes nas fazendas do entorno, é possível constatar outras propriedades utilizando agrotóxicos nos cultivos a poucos metros da fronteira do parque. Há ainda os caçadores, que constantemente circulam no interior da floresta. “O resultado vemos aqui: rios estão secando, nascentes assoreadas, o ciclo da natureza afetado”, diz Zezinho Pataxó.
A TI Comexatiba é uma das 64 áreas de sobreposição, de acordo com levantamento conjunto realizado pela Funai e o ICMBio. No entanto, o presidente do ICMBio, Cláudio Maretti, argumenta que a terra dos Pataxó ainda não está homologada, logo, não pode ser considerada indígena. Justamente por isso Maretti defende as reintegrações de posse, afirmando que o ICMBio vem tentando a retirada pacífica dos Pataxó até a conclusão da demarcação.
Em entrevista ao Instituto Socioambiental (ISA), o professor de direito ambiental Carlos Marés, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), diz que o ICMBio está equivocado. Ele esclarece que, para ser considerada indígena, segundo a Constituição de 1988, a terra não precisa do decreto de homologação. “É um direito que vem da origem. Portanto, a demarcação, ou o reconhecimento público, é apenas o reconhecimento de um direito preexistente”, explica. “A não ser que o Estado diga que os índios não existem e, portanto, não têm território”, disse o professor.
Aruã Pataxó, presidente da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat) e cacique da aldeia Coroa Vermelha, explica que a mesma situação de conflito com o órgão governamental repete-se na Terra Indígena Barra Velha. Esta outra área Pataxó, em cujo território incide o Parque Nacional Monte Pascoal, passa por um processo de revisão de seus limites. Por isso, no final do mês de fevereiro, entre as diversas atividades em Brasília, os Pataxó participaram de uma reunião no Ministério do Meio Ambiente, onde tentaram a abertura de um diálogo com o governo para a solução do conflito.
“As conversas ocorrem há algum tempo já. O ICMBio não pode alegar que se trata de uma decisão da Justiça e nada pode se fazer quanto a isso. A gente percebe o ICMBio traindo acordos, sem querer avançar no diálogo”, afirma Aruã.
“Olha, eu vim pra essas terras bem antes dessa história de parque, ICM não sei o quê. Expulsaram os mais antigos, e depois voltamos tudo pra cá. Essa aldeia [Alegria Nova] ficava mais pras brenhas da mata. Tá tudo as marca lá pra quem quiser ver. Aqui, nesse pedaço que refez a aldeia que tamo tudo agora, a gente vinha pegar fruta, nossa medicina”, diz dona Amora Pataxó.
No alto dos 64 anos, dona Amora se mostra estafada com as tensões provocadas pelas reintegrações de posse; uma tremedeira agarrada nas mãos negras e calejadas, o coração fraco de tanto bater forte. “Uma filha minha se pegou numa depressão que… só por Deus… ela sai andando por aí. Os meu menino vão atrás dela. Me deixa aqui um neto que não sabe da mãe”, explica dona Amora.
A Pataxó, porém, não sairá de Comexatiba. “Prefiro morrer aqui do que ir pra cidade pedir esmola, viver jogada feito cão sem dono. Meus menino tudo tão entregue pra essa luta”, declara. O depoimento de dona Amora se respalda em sua própria história, naquilo que os antigos lhe passaram e hoje ela conta aos mais jovens.
Duas sobreposições à terra indígena
Em 1820 o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied chegou ao extremo sul da Bahia e registrou, em fartos relatos, a presença do povo Pataxó entre o litoral e o interior da Mata Atlântica. Segundo esse etnólogo alemão, eles viviam “atrevidos e valentes”, sem “domicílio certo, andam errantes, vivendo da pesca, caça e furtos” (Revista Trimensal de História e Geographia, 1846, p. 442).
Com base nos relatos do príncipe naturalista, a professora e pesquisadora Maria Giovanda Batista demonstra que a redução da Mata Atlântica na região ocorreu conforme os Pataxó, e demais povos indígenas, foram expulsos de suas terras.
Para a professora, que coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas Interculturais e da Temática Indígena da Universidade do Estado da Bahia, em Teixeira de Freitas, “tornou-se possível demonstrar que entre 1951 e o ano 2000 a Mata Atlântica na região caiu de 95% intacta para menos de 3%”. Maria Giovanda complementa: “Em 1951, um grande incêndio (de origem criminosa) expulsou os indígenas (que se dispersaram para outros pontos da mata). Em 1951, a população não indígena era de 23 mil habitantes, espalhados em sete municípios. Isso até 1958.”
A partir dos anos 1960 e até o ano 2000 o crescimento da região é vertiginoso: surgem 21 municípios e a população salta para cerca de 1 milhão de habitantes. Dos 3 milhões de hectares que compõem a região hoje, 2 milhões “estão dominados por meia dúzia de empresas. O eucalipto toma conta de 800 mil hectares e o restante da área é formado por fazendas de gado e, mais ao sul, pela plantação de cana-de-açúcar”.
Pode-se concluir que, além de pelo menos uma dezena de outros povos indígenas, os Pataxó sempre estiveram presentes nas áreas que reivindicam como tradicionais, desde a chegada dos colonizadores. O que também permite perceber que sempre resistiram.
A década de 1970 é repleta de histórias de massacres de famílias que se negavam a sair das margens do Rio Cahy, cuja foz, no Oceano Atlântico, foi o provável cenário do desembarque dos primeiros europeus no Brasil, em 1.500. A indústria madeireira Bralanda é responsabilizada pelo assassinato de famílias inteiras, caso de um grupo que se autodenominava Guató, segundo Zezinho Pataxó. “Eram uns cinco ou seis. Tudo índio. Eu era garoto e lembro que chegava uns cabas da Bralanda e mandava sair. Esses Guató se negaram e foram mortos. Era assim com todo mundo que se negava a sair”, relembra Zezinho.
Dessa forma a Bralanda antecedeu o Parque Nacional do Descobrimento na sobreposição ao território Pataxó. Deve-se também a essa indústria a devastação da Mata Atlântica na região, o que motivou a criação de áreas de preservação ambiental e novas sobreposições, por órgãos estatais ambientalistas. A professora Maria Giovanda ressalta que “o PND foi criado sobrepondo uma outra sobreposição, a antiga Bralanda. Então, o ICMBio tem colocado uma pá de cal sobre uma injustiça com dezenas de famílias que tiveram seus membros assassinados, a partir de 1970, com a Bralanda e outras empresas que começam a expulsar essas famílias na base da violência”.
A família de Bernarda Machado Neves vivia ao sul da margem sul do Rio Cahy, até a expulsão. O cacique Timborana, da aldeia Cahy, ainda era um menino de dez anos. “O fogo era ateado ao sul do Rio Cahy e, ao norte, os Pataxó se refugiaram. O clã de dona Zabelê e seu Manoel, por exemplo, foi recebido pelos indígenas que viviam nessa porção norte”, explica a professora. Jovita Oliveira Pataxó lembra que eles andavam nus em Cumuruxatiba, cidade em que ela vive ao lado dos filhos. “Se pensar bem, isso aqui era tudo dos Pataxó. Foram chegando, chegando [não indígenas, empresas]. Está aí essa luta hoje”, reflete Jovita.
Desde 2003, quando ocorreram as principais retomadas do território então chamado Cahy-Pequi, hoje Comexatiba, os Pataxó já plantaram mais de 20 mil árvores nativas, incluindo o pau-brasil. As roças são feitas ao redor das casas – sem devastar a mata. “Os Pataxó são os maiores especialistas de Mata Atlântica nessa região. Mantiveram-na e, com ela, sustentaram a alimentação, a base da microeconomia – entre a mata e o mar. Estamos gestando mal-entendidos sobre a história ao afirmar que a Mata Atlântica só pode ser preservada sem os Pataxó”, defende Maria Giovanda.
A professora cita ainda a vasta presença indígena na região, que não compreende apenas os Pataxó. Ela explica que 80% da população de Prado é nativa, oriunda de clãs ou famílias dispersas no percurso da história. Em Cumuruxatiba, por exemplo, “existem seis etnias diferentes; grupos, famílias pequenas. Identificamos tudo isso com estudos e pesquisas”, diz Maria Giovanda.
“O ICMBIO ignora, na sua base etnocêntrica, que, assim como na Amazônia, o etnoconhecimento dos indígenas sobre a natureza, desenvolvidos epistemicamente, os alçam a reconhecidos preservadores das florestas. Os Pataxó também demonstram isso”, aponta a professora. Ela explica que a cosmologia Pataxó está atrelada à Mata Atlântica: “Os nomes dos filhos são de pássaros deste bioma e, da mata, eles retiram suas indumentárias, além da alimentação, a mesa farta… não há possibilidade de sustentação do ecossistema Mata Atlântica sem a demarcação da terra Pataxó”, diz Maria Giovanda ao concluir: “Um ambiente não pode ser sustentável com a desterritorialização de 15 mil indígenas, cuja população de crianças chega a oito mil”.
Em agosto de 2015, homens armados invadiram a aldeia Cahy, em Comexatiba, e queimaram uma maloca que continha artesanatos e objetos de uso tradicional e religioso. Em seguida, ocorreu uma série de ataques de pistoleiros e os indígenas chegaram ao ponto de esconder seus filhos em caixas d’água à noite, com medo dos tiros.
No início deste ano, no dia 19 de janeiro, uma ação de reintegração de posse ocorrida na mesma aldeia Cahy surpreendeu dezenas de famílias. Além do posto de saúde e da escola, várias casas foram destruídas, muitas delas com os pertences dos indígenas em seu interior.
Conforme o relato dos indígenas, aproximadamente cem policiais federais, militares e civis, acompanhados de agentes da Companhia Independente de Policiamento Especializado/Mata Atlântica (Caema), chegaram à aldeia às sete horas da manhã, anunciando a reintegração de posse. “Eles deram um prazo para a gente retirar as coisas das casas, mas o prazo não foi suficiente. Mesmo assim, eles tocaram as patrolas por cima, com as coisas dentro mesmo”, afirma Xawã Pataxó, liderança da aldeia Cahy.
“A reintegração aconteceu de surpresa, no dia em que a comunidade estava se organizando para a festa de São Sebastião. A escola estava sendo organizada para o início do ano letivo, e eles tiraram tudo de dentro e jogaram numa área quase um quilômetro longe da aldeia, de fogão a giz de cera. Agora estamos na rua, não sabemos para onde ir”, relata a liderança.
Na decisão proferida pelo juiz Guilherme Bacelar, da Justiça Federal de Teixeira de Freitas (BA), em favor de uma fazendeira da região, contudo, o relatório já publicado pela Funai não seria critério suficiente para impedir a reintegração de posse, e a situação de insegurança e vulnerabilidade em que os indígenas agora se encontram também não foi considerada um problema. “A gente tinha horta lá. É uma parte importante da nossa subsistência o plantio de mandioca, melancia, que a gente vende pro pessoal da cidade. Não sabemos como vamos fazer agora”, afirma a liderança Xawã Pataxó.
Em setembro de 2015, o mesmo juiz decidiu não conceder uma liminar requerida pelo Ministério Público Federal (MPF) em ação civil pública. Na ação, o MPF caracterizava o caso como de “grave omissão” do poder público, em função da insegurança física e jurídica decorrente da demora na demarcação, e solicitava que o juiz Guilherme Bacelar estabelecesse um prazo de 180 dias para o Ministério da Justiça publicar ou manifestar-se sobre a Portaria Declaratória da TI Comexatiba.
*Essa reportagem compõe a edição de janeiro/fevereiro do Jornal Porantim.