A Constituição morreu. Chama o povo para fazer outra!

Por Gilberto Bercovici e José Augusto Fontoura Costa*, na Carta Maior

Caducou. A Constituição brasileira de 1988 passou a acompanhar as outras sete no melancólico balaio das curiosidades históricas.

Todo estudante de primeiro ano de Direito sabe: a noção de constituição é segmentada. Do ponto de vista das efetivas relações políticas e sociais, refere-se à estrutura e organização dos aparelhos de controle estatal mais ou menos centralizados. Da perspectiva jurídica abstrata, a um conjunto de normas que refletem e instituem o Estado e a dinâmica dessas situações concretas. Isso existe desde que o macaco virou gente ou, segundo os etólogos, antes disso. A redução ingênua da ideia de constituição a um documento escrito é recente, historicamente limitada aos dois últimos séculos e ideologicamente orientada pelo individualismo proprietário e pelo medo do povo das revoluções liberais do ocidente.

Ora, a Constituição de 1988 se converteu em um documento escrito sem qualquer relação efetiva com a sistemática e composição do povo e comunidade brasileiros. Abandonou sua dimensão política pela grosseira perda de efetividade, de respeito, até. Perdeu o potencial de limitar e orientar a composição e dinâmica das relações políticas e sociais, desrespeitada a céu aberto com fundamento em faits accomplis e de argumentos pseudojurídicos proferidos por pseudojuristas. Ficou só a folha de papel, descolada dos fatores reais de poder.

Guardiões formalistas do rito simulam conservar sua utilidade como orientadora da composição institucional do aparelho de Estado. Isso não é verdade. O escandaloso descaso corporificado na farsa do impedimento contra a Presidente escancara a afronta a princípios exageradamente fundamentais; tão fundamentais que a Moribunda de 1988 deu seus últimos suspiros. Não se fala mais de tecnicalidades bizantinas; discute-se o respeito à anterioridade da lei penal, à generalidade da lei, à isonomia. Essa, porém, é apenas a proverbial gota d’água.

O copo não derrama só como consequência de configurações episódicas. Mesmo que, contrariando todas as expectativas minimamente realistas, o STF cumpra seu papel de defesa da Falecida de 1988 e decida se, in abstracto, pedalar é ou não é crime de responsabilidade. Cozido o ovo, não se reverte o processo. Aquela que já se denominou Cidadã foi perdendo força e resiliência; trama e urdidura já não estão coesas, o tecido constitucional não rasgou, esgarçou-se. Os projetos de país democrático, desenvolvido, livre e igual foram amarelando pouco a pouco, em nome de conjunturas, da “governabilidade”, de soluções de compromisso, daquela mancha indelével removida esfregando saponáceos corrosivos. Foi se desgastando no uso indevido e pelas sucessivas emendas que, destacadas as deliberadamente desfigurantes de 1995, a adaptavam à moda do momento. No fim, virou andrajo. Os insistentes em os vestir são, hoje, objeto de descrédito. Cassandras ou Jurássicos.

Um dos resultados desse lento e doloroso processo é a impossibilidade de identificar, hoje, elementos do instrumento formal capazes de orientar um projeto nacional e articular uma agenda positiva reconstitutiva de um pacto social sensível às transformações da composição de forças, interesses e compreensão de mecanismos adequados de governo e administração. O processo político atual e o governo que se avizinha geram visões nauseantes, quando não aterradoras: qual é o projeto de país? Qual é a visão de futuro que se busca compartilhar ou, pelo menos, compactuar? Desenvolvimento? Igualdade? Liderança regional? Com a vitória do golpe de Estado de 2016 e a morte matada da Constituição de 1988, adentramos no século XXI já vencidos, retrocedendo a passos largos rumo ao século XIX

A Demodée de 1988 já não serve mais, qual a velha roupa colorida de Belchior. Hoje se ocupa o aparelho de governo para realizar interesses desarticulados daquilo que os brasileiros sonharam enquanto testemunhavam o fim da ditadura militar. Curiosamente, até porque a História se repete como farsa, parece que a democracia hoje dá passo não a um sistema absoluto ou totalitário, mas a um ajuste feudal, cerzido em vínculos de suserania e vassalagem, estampado pela submissão servil do trabalho e com reis parecidos a cartas de baralho e inteiramente ao sabor dos interesses e vaidades dos grandes barões.

Raymundo Faoro, presidente nacional de uma Ordem dos Advogados do Brasil heróica que combatia os golpes de Estado, não de uma oportunista que os legitima, afirmava que nunca, na história brasileira, o poder constituinte do povo teria conseguido vencer o patrimonialismo e o aparelhamento de poder. No entanto, foram justamente as investidas desse poder constituinte democrático aquelas que conseguiram efetivamente desafiar o poder enraizado da oligarquia que nos parasita.

Não dá para esperar pela próxima liquidação de estoques, nem optar por algum prêt-a-porter de carregação. É imperioso, desde já, gestar a nova Constituição; fiar e tecer sua fazenda pelas mãos de nossa gente humilde, buscar os melhores alfaiates para tomar as medidas e desenhar conforme as necessidades do Brasil e coser cuidadosamente, sob o atento olhar do soberano. E ele não é o rei, é o povo.

A Constituição está morta? Viva o Poder Constituinte do Povo!

*Professores da Faculdade de Direito da USP.

 

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