Alertamos sobre a importância da solidariedade internacional diante dos descaminhos da jovem democracia brasileira. O plano de governo do presidente interino se chama “Uma Ponte para o Futuro”, porém suas medidas apontam para o passado
Editorial da FASE
Mais uma etapa do golpe institucional pelo qual passa o Brasil foi concluída no Senado nesta quinta-feira (12). Em seu primeiro pronunciamento como presidente interino, Michel Temer (PMDB) falou em “confiança” e “vitalidade da democracia”, um discurso contrariado por suas próprias medidas iniciais. Elas demonstram um caráter privatizante sob a justificativa de redução de gastos do Estado. Mas os cortes na carne afetam áreas sociais e estratégicas para o combate às desigualdades e às opressões. O nome de seu plano de governo é “Uma Ponte para o Futuro”, porém suas estruturas, quem sabe construídas por empreiteiras envolvidas em corrupção, apontam caminhos que levam ao passado, lembrando um misto de épocas extremamente neoliberais, como a dos anos 1990, com outras mais antigas, as da ditadura civil-militar.
Fecharam-se portas já estreitas nos governos de Dilma Rousseff e de Luiz Inácio Lula da Silva, ambos do PT. Ministérios como o do Desenvolvimento Agrário, das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos foram extintos. Pastas essas que sempre tiveram orçamentos menores do que deveriam, mas por onde parte das organizações e movimentos sociais do país, inclusive a FASE, pressionou arduamente pela construção de políticas de interesse realmente público. Recentemente, mais de 60 instituições, por exemplo, publicaram manifesto em defesa da agricultura familiar e agroecológica. Elas se posicionaram contrárias ao desmonte da Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater), do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que ajudaram o país a sair do Mapa da Fome.
Em apenas um dia também foram engolidas áreas centrais para a radicalização da democracia, como a Cultura e as Comunicações. O slogan “ordem e progresso” seria o mote para a recuperação da economia, com a “unificação do Brasil” para a “salvação nacional”. Palavras nacionalistas que ilustram o que há de mais ultrapassado na política institucional, incapaz de incluir, ao menos, um ser que não seja um “homem branco” nos cargos de poder, fazendo um retrato nada fiel de um país em que mais de 50% da população, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são de mulheres e de negros. Povos indígenas, como sempre, também foram extirpados da “representação do povo brasileiro”.
É importante destacar o papel dos meios de comunicação corporativos na criminalização da “política”. Jornais, revistas, emissoras de TV e rádio, tão concentrados nas mãos de poucos no país, insistiram em uniformizar as “manifestações vermelhas” como se elas fossem, necessariamente, em defesa do governo Dilma. Será essa a “imprensa livre” mencionada por certos senadores durante a votação? Essa que fortalece a polarização, que cria ruídos e promove intolerância? É claro que manifestantes do PT, seus simpatizantes ou eleitores também estiveram nas ruas, porém caberia fazer uma leitura mais ampla. No momento de seu afastamento, a própria presidenta reconheceu que grupos críticos ao seu mandato também saíram em defesa da democracia.
Duas articulações têm chamado protestos de esquerda pelo país: a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo. Com suas diferentes análises têm demonstrado a importância de unidade na diversidade nesse momento histórico. Com a admissão do processo de impedimento do Senado e o afastamento de Dilma por até seis meses, a primeira destacou que “o voto popular foi usurpado por parlamentares dispostos a tomar de assalto o poder político, agindo à revelia das urnas e formando um governo ilegítimo”. A segunda lembrou que o golpe que se configura “teve como grande articulador o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, envolvido em inúmeros escândalos de corrupção”. Além dessas articulações, existem ainda outros grupos que realizam lutas em diversos territórios. Para a FASE, é importante o diálogo entre essas forças para barrarmos mais retrocessos.
É preciso, ainda, vetar mais arrochos fiscais e mercantilização de direitos, como da educação, da saúde e do transporte. E seguir resistindo a um golpe que poderá refletir negativamente em toda a América Latina, beneficiando o livre comércio com os Estados Unidos, a China e países da Europa. O que está em jogo são também o petróleo e outras riquezas naturais. É necessário ampliar o debate para além do fim do controle da Petrobras sobre o Pré-Sal, viabilizando alternativas ao desenvolvimentismo em favor dos povos, não das transnacionais. Além de “Luz para Todos”, é necessário pensar na possibilidade de diversificar nossa matriz energética, em deixar o óleo, o gás e os minérios no fundo do mar e nos subsolos, a biodiversidade fortalecida nos diversos biomas do país, assim como as vidas que neles se reproduzem.
Continuaremos criticando a falida política de conciliação de classes em nome da “governabilidade” que corroborou com desvios que nem a Operação Lava-Jato, visivelmente limitada e parcial, será capaz de resolver. Repudiamos a corrupção, mas isso sem nos somar às forças golpistas. Dilma disse não ter cometido crimes, mas sim erros. Fazemos questão de dizer que, para nós, esses nada têm a ver com as chamadas “pedaladas fiscais”. A reforma agrária foi esquecida pelo Estado, não se combateu a indústria dos agrotóxicos, populações foram afetadas por grandes empreendimentos, como a construção de hidrelétricas de Belo Monte, no Pará, as obras para a Copa do Mundo em vários estados e as Olimpíadas no Rio de Janeiro, o Porto de Suape, em Pernambuco, dentre outros.
Temos visto retrocessos no nosso continente, na África e na própria Europa, vide a crise vivida por refugiados e as reações a ela, com aumento de políticas de austeridade. Alertamos aos nossos aliados estrangeiros sobre a importância da solidariedade internacional diante dos descaminhos de nossa jovem democracia. É fundamental que as esquerdas se mobilizem pelo mundo para que esse processo vivido no Brasil, tão vigiado por suas qualidades geopolíticas, não se expanda. Que os livros contem o real contexto desse atentado ao Estado Democrático de Direito em nosso país.