De ódio e de amor

Elaine Tavares – Palavras Insurgentes

Ainda é muito poderosa a força que exerce a grande mídia comercial, principalmente a televisão, na formação de ideias e princípios acerca da vida e do mundo. Todos os dias esses meios chegam massivamente nas pessoas, atirando verdades e semeando conceitos. No geral, essas empresas comerciais – de televisão  e de jornalões – são braços armados da classe dominante. Falam e escrevem aquilo que serve aos interesses dos que dominam o mundo no modo de produção capitalista.

Um dos tiros certeiros dessa fábrica ideológica é a criação do ódio. Mas, não é exatamente ódio de classe, explícito. Ele se fragmenta em “pequenos ódios singulares” que servem para manter em estado permanente de vigília e conflito trabalhadores contra trabalhadores. Fomentar o ódio intra-classe ajuda a esterilizar o inimigo verdadeiro, que deveria ser o sistema capitalista, ou classe que dirige esse modo de vida tão mortal. Então, criam-se verdades sobre a maldade dos gays, o terrorismo natural dos árabes, a delinquência dos latinos e negros, a insanidade das mulheres feministas, e por aí vai.

Nos Estados Unidos isso é fica completamente visível através da indústria cultural, que nos chega com pacotes bem embalados, reproduzidos pelas grades redes de TV. Qualquer filme estadunidense que mostre o cotidiano dos adolescentes deixa claro que, na escola, todos esses “pequenos ódios” afloram e são vistos como normais.

Talvez por isso não apareça como absurdo o fato de que milhares de pessoas tenham comemorado o terrível massacre acontecido numa boate gay em Orlando, como se a morte de mais de 49 pessoas tivesse sido uma limpeza necessária. Não causa espanto porque os mortos, além de homossexuais eram também, na maioria, latinos. Ou seja, para os que crescem sendo inoculados com os “pequenos ódios”, o massacre foi digno de celebração. Ainda mais que o assassino, Omar Mateen, foi um “árabe”, logo, um terrorista em potencial. Pouco se falou do fato de ele ser um estadunidense, criado nos EUA, que comprou suas armas nos EUA e atirou em gays e latinos, porque fora inoculado com o ódio sistemático desde sempre. Para todos, a causa vem de fora. É mais seguro pensar assim.

Mas, o ódio aos gays e latinos não ficou só na celebração do massacre. Os “ativistas” homofóbicos ainda buscaram fazer manifestações nos enterros das vítimas. E pasmem, eram“cristãos”, como no caso do grupo da Igreja Batista Westboro, que tentou tumultuar o funeral de uma das vítimas, Christopher Leinonen, no último sábado. Esse grupo já é bastante conhecido no país e tem se destacado exatamente por isso: fazer arruaça nos enterros de homossexuais.

Como entender uma coisa dessas? Como não perceber que aí está o resultado de anos e anos de pregação racista, homofóbica, discriminadora contra qualquer tipo de gente que fuja do padrão da eugenia estadunidense: branco, rico, domesticado e ignorante.

Nós, no Brasil, vamos vivendo tudo isso também, com a ascensão de figuras que pregam descaradamente a violência contra homossexuais, que falam publicamente que poderiam estuprar uma mulher pelo simples fato de ela ser uma política atuante, que incitam ao ódio cirúrgico. Esses ódios em gotas contra parcelas específicas da população: negros, mulheres lutadoras, homossexuais, ativistas sociais, sem-terra, sem-teto, estudantes secundaristas, índios. São ódios particulares, fomentados aqui e ali, hora um, hora outro e que, certeiramente, também acabam dividindo as lutas. Há que se ligar que o que esses caras  – os quais me recuso a nominar – querem é justamente isso, dividir e enfraquecer.

O que essa gente faz é propagandear seu ódio à classe trabalhadora, aos empobrecidos, aos oprimidos pelo sistema, aos que estão em luta pela transformação. Por isso escolhem uma ou outra parcela, para escamotear e fazer com que a própria classe trabalhadora entre na espiral do ódio contra os seus. O ódio intra-classe, desagregador e destrutivo que faz o negro odiar o índio, o branco odiar o negro, a mulher ver uma “vagabunda” na outra mulher que luta, um trabalhador ver um bandido no agricultor sem terra ou no pai de família que luta por moradia. Tudo tão bem orquestrado pela mídia comercial, fábrica de ideologia.

Mas, enfim, nem tudo está perdido. Gente há que se importa e age. Como as 200 pessoas que decidiram ir ao enterro de Christopher Leinonen, para proteger o morto e os familiares dos ativistas “cristãos”. Ajudados por outros tantos voluntários do departamento de figurino do Orlando Shakespeare Theater, que criaram estruturas imitando asas, eles se vestiram de anjos da guarda e foram enfrentar os violentos homofóbicos da Westboro.

Esses contra-manifestantes tem feito isso sistematicamente desde 1998 em situações como essas, buscando apoiar as famílias contra os homofóbicos. São pessoas comuns, que sabem que ódio particularizado da classe dominante não serve à maioria. O que serve é o amor, o reconhecimento de que o outro, o caído, o oprimido, o índios, negro, sem-terra, sem-teto, a mulher que luta, o imigrante empobrecido, enfim, cada um e cada uma que busca transformar o mundo é um irmão e uma irmã em potencial. Logo, há que defendê-los.

A cena dos “anjos” nos enterros encheu meu coração de alegria. Acredito firmemente: dia virá em que o amor unirá a todos os que querem construir um mundo de riquezas repartidas, de reciprocidade, cooperação e solidariedade. Porque as revoluções que transformam a vida são eivadas de amor, por todos aqueles que merecem sentar a mesa do banquete que, hoje, só é oferecido a uns poucos no mundo. Nós ainda vamos dançar, comer e beber no paraíso, construído por nós, aqui e agora.

Foto: AP.

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