Por Haroldo Heleno, Cimi Regional Leste – Equipe Itabuna
O Conselho Indigenista Missionário – Regional Leste, através de sua equipe de base no sul da Bahia, realizou no período de 10 a 12 de junho de 2016 um seminário de jovens indígenas, que teve como tema motivador “Herdeiros da história, guerreiros da luta”. O evento contou com a participação de cerca de 75 jovens dos povos Tupinambá, Pataxó Hãhãhãe e Pataxó, vindos de várias aldeia do sul e extremo sul da Bahia, e de jovens Xakriabá, oriundos do norte de Minas Gerais, além de representantes de entidades parceiras, como a Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR), e de antropólogos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O objetivo principal do seminário foi recolher subsídios e desencadear um processo de reflexão que possibilite elaborar uma estratégia nacional de atuação e apoio voltados para a juventude indígena, a partir das experiências de luta dos jovens Tupinambá, Pataxó, Pataxó HãHãHãe e Xakriabá, que estão à frente de processos de reconquista de seus territórios. Mais especificamente, a atividade visou examinar experiências em curso protagonizadas por jovens indígenas nos campos da luta pela terra, da segurança alimentar, do meio ambiente e da gestão territorial, avaliando a relevância de sua atuação e identificando demandas para seu fortalecimento e potenciais de disseminação.
O seminário também buscou responder, a partir dos próprios jovens, algumas questões relevantes. Que lições podemos aprender de situações particulares em que jovens indígenas, longe de serem problemas, apresentam-se como parte da solução e como atores de desenvolvimento? Que outras formas de atuar e de fazer política esses jovens nos ensinam? E quais as implicações (oportunidades e limitações) da abordagem particular do Cimi (considerando os princípios da entidade, seus valores e referências) para ações com a juventude indígena?
Foram momentos muitos ricos de debate e tomada de decisão. A dinâmica do encontro proporcionou aos jovens indígenas a possibilidade de desenvolverem uma profunda reflexão sobre a história de luta de seus povos, seus avanços e os perigos que rondam suas conquistas. A todo momento, anciões e guerreiros do passado eram evocados como exemplos de luta que devem ser seguidos, – o próprio ambiente do evento foi coberto com banners com retratos de figuras importantes e frases emblemáticas por elas proferidas, remetendo os jovens à reflexão e tomada de posição. Eram dizeres como o do cacique Tururim, que vive em Barra Velha: “Futuro é igual a passado, não deve ser desprezado”.
De Zabelê, anciã Pataxó já falecida, escolheu-se a frase: “Quero nossa terra, para meu povo manter viva a nossa cultura” e do cacique Samado, “Sirvo até de adubo para minha terra, mas dela não saio”. Os jovens contaram ainda com a presença da memória do Caboclo Marcellino, que doou sua vida em defesa do povo Tupinambá, e de Galdino Pataxó, queimado vivo em Brasília por jovens da classe media, quando lutava pela sua terra. Muitos momentos lúdicos também foram realizados a partir do tema motivador: exibição de vídeos, peças teatrais, desenhos e muitas musicas criadas a partir dos trabalhos em grupos. Destacamos o rap criado pela Banda JM Tupinambá com o tema do seminário.
Dos trabalhos de grupo e das conversas noite adentro, surgiram propostas como a construção de uma agenda comum de luta envolvendo jovens de diferentes povos indígenas; a intensificação do intercâmbio de experiências entre as várias organizações juvenis existentes; a estruturação do conselho da juventude indígena Pataxó na Bahia; a promoção de atividades de capacitação e encontros de formação com foco na legislação indigenista, voltados aos jovens e contando com o apoio de parceiros como o Cimi e a AATR; a busca da autossustentabilidade do movimento; a utilização de forma adequada das novas tecnologias de comunicação, direcionando-as para a luta; a articulação com jovens urbanos e a ampliação do leque de aliados nas lutas, envolvendo quilombolas, sem-terra e sem-teto, entre outros; e o desenvolvimento de uma ação constante e eficaz contra o processo de criminalização de suas comunidades.
Nesse processo, os jovens indígenas ritualizaram seus sonhos, lembraram-se de seus anciões e lideranças, valorizaram suas histórias de luta e firmaram compromissos que podem ser mais bem compreendidos no documento por eles aprovado ao final do encontro.
Leia na íntegra o documento final e veja o vídeo:
DOCUMENTO FINAL: SEMINÁRIO DE JOVENS INDÍGENAS “HERDEIROS DA HISTÓRIA E GUERREIROS DA LUTA”
Nós, cerca de 70 jovens indígenas dos povos Pataxó Hãhãhãe, Pataxó e Tupinambá, do estado da Bahia, e Xakriabá, de Minas Gerais, contando com a presença dos parceiros do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), da Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) e de universidades, estivemos reunidos entre os dias 10 e 12 de junho de 2016 na aldeia Sapucaieira, no território do povo Tupinambá, participando do Seminário de Jovens Indígenas, que teve como tema motivador “Herdeiros da história e guerreiros da luta”.
Movidos pela nossa herança ancestral, que nos fortalece e nos conduz na busca de uma Terra sem Males, e nos faz reafirmar o compromisso e a responsabilidade de continuar nosso processo de luta contra o Estado brasileiro e contra todos os nossos inimigos, que, com posturas colonialistas, continuam nos roubando, nestes 516 anos, negando nossos direitos, saqueado nossas riquezas naturais, dificultando a manutenção dos nossos projetos de Bem Viver e tentando negar a construção do nosso futuro.
No nosso seminário, refletimos e discutimos todos esses desafios, que não são poucos e às vezes até nos assustam, mas não nos fazem desanimar, muito pelo contrário: nos fazem ficar mais fortes e animados para defender nossos diretos. Como diz o tema do seminário, somos herdeiros de uma história muita rica e, ao mesmo tempo, somos guerreiros de uma luta que não pode parar. Apesar dos ataques – através de Propostas de Emendas Constitucionais, como as PECs 215 e 038, e de Projetos de Lei como o PL 1.610 (mineração), e até mesmo de atos do próprio do governo federal, como a Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU) e a infeliz interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o Marco Temporal, que equivocadamente tenta retirar nossos direitos originários, garantidos na Constituição Federal –, estamos organizados e fortalecidos. Diante de tudo isso, nos reunimos em grupos e destacamos esses desafios; ao mesmo tempo, compartilhamos nossos sonhos e nossas expectativas, e apresentamos formas de nos mobilizarmos e de nos unirmos na luta pela garantia de nossos direitos e nossos territórios.
Reafirmamos:
– Nosso desejo e nosso compromisso de continuar a luta iniciada e conduzida pelos nossos anciões e guerreiros do passado, animados pelos nossos encantados e seres de luz, que nos fortalecem e nos conduzem. Para isso, é preciso fortalecer ainda mais a nossa espiritualidade, através dos rituais, das conversas e dos encontros com os nossos anciões;
– Fortalecer o intercâmbio e a troca de experiência e saberes entre as comunidades, em especial com os jovens indígenas;
– Fortalecer e ampliar as nossas organizações juvenis. Ir em busca dos jovens indígenas que ainda não estão neste processo de organização;
– Usar de maneira adequada os avanços tecnológicos a nosso favor, visando fortalecer a nossa luta e organização, a exemplo do whatsapp, facebook e outros. Potencializar os meios já existentes, como as rádios comunitárias que já se encontram em algumas aldeias;
– Buscar e criar formas de autogestionar as nossas lutas e organizações, garantindo assim a nossa autosustentabilidade, com roças comunitárias dos jovens e produções artesanais, entre outras;
– Fortalecer o aprendizado da juventude em torno das práticas tradicionais voltadas para a saúde indígena, tais como o cultivo de ervas medicinais e a valorização dos saberes tradicionais das parteiras e rezadores, entre outros;
– Denunciar e tomar providências contra todos os preconceitos, os ataques aos nossos direitos e o intenso processo de criminalização que hoje acontece com as nossas lutas e as nossas lideranças;
– Unir forças com outros lutadores populares, como os irmãos quilombolas, sem-terra, sem-teto e lutadores urbanos, contra os nossos inimigos comuns;
– Lutaremos pela construção de uma universidade indígena, que respeite e garanta as nossas especificidades;
– Nos somaremos com nossas lideranças e uniremos nossas forças pelo processo de autodemarcação dos nossos territórios.
Repudiamos e exigimos providências contra:
– Todos os ataques contra os nossos direitos através de PECs, PLs, Portarias, Mandados de Segurança e grandes empreendimentos que afetam e degradam nossos territórios;
– Exigimos a imediata demarcação dos territórios indígenas em todo o Brasil. Queremos a imediata suspensão dos mandados de segurança que pesam sobre os territórios dos povos Pataxó e Tupinambá;
– O processo de criminalização contra nossas lutas e nossas lideranças patrocinado pela bancada do Boi, da Bala e da Bíblia, hoje existente no Congresso Nacional;
– A constante incitação à violência contra as nossas comunidades, a exemplo do último pronunciamento do deputado federal Luiz Heinze (PP/RS), contra os povos indígenas do Brasil, em especial contra os povos do sul da Bahia;
– Denunciamos o golpe em curso no país, que, na verdade, busca retirar ainda mais nossos direitos, pois o mesmo é apoiado pelos inimigos dos povos indígenas;
– Queremos honrar os nossos compromissos e fazer jus ao tema do seminário, “Herdeiros da história e guerreiros da luta”: ao som dos nossos maracás, olhando e valorizando o nosso passado e fortalecendo o presente, para construir o futuro.
“Vamos amigo, lute! Vamos amigo, lute! Vamos amigo, ajude! Senão a gente acaba perdendo o que já conquistou” (Edson Gomes)
Aldeia Sapucaieira, 12 de Junho de 2016.