Por Izaías Almada*, no blog da Boitempo
Por vezes nunca é demais chover no molhado. Ou, para dar força a esses velhos anexins, digamos que: água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. É o caso atual da nossa democracia de governo interino, “legitimado” por uma farsa mediática por mais de dez anos. Tanto fizeram os maus perdedores nas urnas em 2014 que começaram a bater e a bater nas panelas e na democracia… E ela furou. Furou e deixou escorrer em meio a uma lama grossa e nauseabunda, um governo interino. Um governo de homens íntegros.
Para começar é bom lembrar que interino significa, passageiro, temporário, provisório, transitório, o que parece não fazer parte das intenções da quadrilha de homens íntegros que assaltou o palácio da Alvorada, por exemplo.
Mas, por outro lado, o ser humano é interino, querendo ou não.
Por vezes, a falta de consciência do ser humano de sua própria interinidade leva-o a cometer desatinos, inclusive em nome do humanismo.
Nessa mesma linha de pensamento, a interinidade excita o cinismo e o egoísmo daqueles que, cientes de que a vida aqui vivida é curta (empresários inescrupulosos, políticos profissionais e oportunistas, magistrados incompetentes, policiais de fancaria, entre tantos outros profissionais da pilantragem), concorrem ou são indicados aos cargos públicos mais representativos para enriquecerem o quanto antes, pois a vida é passageira.
Herdeiros que somos de uma colonização predatória e entreguista, pois muito da riqueza colonial foi aqui extraída para pagar a coroa inglesa via Portugal, e praticantes do mais longo, vergonhoso e abjeto regime escravista, nós – brasileiros – impregnamo-nos desse modo de viver utilitarista e preconceituoso.
Aqui e agora, os outros que se danem. O futuro a Deus pertence, escarnecem os religiosos de meia tigela, como dizia minha avó. Sobretudo esses dos 10%…
Assim, boa para colônia foi a Europa de cortes finórias, com seus elegantes palácios e jardins. Depois, a partir da segunda metade do século XX o bom passou a ser “made in USA” e até um pouco de “made in Japan”.
Bom também é saber falar inglês, francês, espanhol e alemão, pois o português, “a gente falamos” como dá… Saboreamos a nossa interinidade com a doce convicção dos abestalhados, na ilusão de que somos espertos.
A interinidade, embora inerente ao ser humano, adquire, consoante o momento histórico e as circunstâncias econômicas, alguma perversidade. Acanalha-se. E nessa condição ela faz parte do DNA brasileiro. Entre nós é regra e não exceção.
A interinidade nos liberta de grandes compromissos, pois se hoje a situação não está muito boa, amanhã pode melhorar. Se piorar de novo, não vai durar muito, é passageiro, transitório.
A interinidade tem duas caras: pode apontar para melhores dias, para saídas honrosas ou pode estagnar-se, usurpar direitos conquistados e como uma metástase cancerosa apodrecer um organismo.
O governo interino de Michel Temer e sua quadrilha, embora todos o saibamos passageiro, pode em sua transitoriedade arruinar o Brasil por reunir em seus quadros pessoas sem qualificação para os cargos que ocupam, sem representatividade dos votos da maioria do povo brasileiro, sem autoridade moral para enfrentar o combate à corrupção, por rasgar a Constituição e, sobretudo, por nos marcar com o estigma da idiotia.
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*Mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Foto: Luis Moura /Estadão.