A indicação do militar Roberto Peternelli, que não tem ligação alguma com a questão indígena e faz apologia do regime militar nas redes sociais, revive uma cruel história de tutela baseada na violência.
A escalada da ofensiva contra os povos indígenas no Congresso Nacional poderá ganhar um reforço temeroso nos próximos dias, com a indicação de um general da reserva para a presidência da Funai. Mais um choque contra direitos arregimentado pelo governo interino de Michel Temer.
No currículo de Roberto Peternelli, cota do PSC e sua bancada evangélica, nenhuma linha sequer sobre qualquer compromisso ou conhecimento em relação à questão indígena. Em contrapartida, não faltam manifestações suas em redes sociais a favor de golpes – o de 1964 como o dia em que o Brasil se livrou do comunismo, e o de agora. Os paralelismos entre os dois golpes se reforçam dia a dia.
A possível nomeação de mais um general para a Funai reinaugura o controle do órgão nas mãos dos militares e revive uma história cruel de tutela baseada na violência, de tratamento da questão indígena como uma questão de segurança nacional e como um obstáculo ao que se diz desenvolvimento.
O passado que nos assombra, ou deveria nos assombrar, da ditadura e da Funai comandada por seus generais e coronéis, está recheada de exemplos de fazer embrulhar o estômago e nos envergonhar como nação.
A indicação do general Peternelli para a presidência da Funai foi criticada e rejeitada por lideranças indígenas e representantes de organizações da sociedade civil ligadas ao movimento indígena. Para Cleber Buzatto, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a simples sugestão do nome do general representa um retrocesso, e ele prevê reação por parte dos povos indígenas. “Consideramos que essa eventual nomeação mostra a insensibilidade do governo golpista do Temer com a questão indígena, e é uma demonstração inequívoca de que o governo retroagiria na ação do Estado brasileiro com os povos indígenas.”
Para Marcela Vecchione, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade do Pará (NAEA-UFPA), o general Peternelli pertence a um tempo institucional que reiterou, em armas e atos, o racismo estruturante de Estado, ao perpetrar o genocídio e o etnocídio de vários povos e pessoas indígenas. Isto, segundo a pesquisadora, baseado no discurso da soberania e segurança nacional.
“Uma realidade brutal, direta e institucional, que não precisou nem da licença poética dos grandes projetos, pois a suspensão da própria humanidade dos indígenas era uma das formas de manifestar a ausência e a negação de democracia também no sentido de outras políticas de existência. É de uma violência desmedida tal nomeação depois da divulgação dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade”, afirma Marcela.
Iara Pietricovsky, antropóloga e do Comitê Gestor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), considera ultrajante a indicação de um general para o comando da Funai. “É mais uma mancha para a história da luta dos indígenas no Brasil. Um general não é a solução, nunca foi, nunca será.”
O Fórum Nacional Direitos Humanos pela Democracia e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil divulgaram notas (leia aqui e aqui) repudiando a indicação de um militar para comandar a Funai, que está sem presidente desde o início de junho, quando o ex-senador João Pedro Gonçalves (PT) foi exonerado pelo governo interino.
Ao fato simbólico da indicação de um general para cuidar da Funai, somam-se outros atos do Poder Executivo em exercício que compõem um quadro claro de golpe aos direitos indígenas.
1) A Medida Provisória 731, ao acabar com os cargos em comissão, os chamados DAS, colocando em seu lugar as Funções Comissionadas do Poder Executivo a serem exercidas por servidores de carreira, desestrutura radicalmente a Funai que têm um peso importante da sua capacidade humana garantida por profissionais com DAS sem vinculação. Isto, também, porque a realização de concursos públicos para este órgão, entre outros, foi sistematicamente preterida por sucessivas administrações;
2) A Medida Provisória 727, ao obrigar os órgãos que são acionados pelo Ibama para conceder licenças e permissões para viabilizar projetos de infraestrutura a toque de caixa, obrigará uma Funai totalmente desestruturada na sua capacidade institucional e comandada por um general a emitir pareceres favoráveis a empreendimentos que potencialmente causaram ainda mais massacres e violações aos direitos indígenas;
3) A estas medidas mais estruturais adiciona-se o congelamento por 90 dias das despesas do Ministério da Justiça (exceção para gastos com olimpíada, política e folha de pagamento) realizado por meio da Portaria No 611, o que afeta diretamente o trabalho da instituição em especial no atendimento às demandas das comunidades indígenas.
No plano das articulações entre o governo interino e o Congresso é preciso lembrar da aliança com os ruralistas que exigiram como principal moeda de negociação para apoiar o golpe o apoio para aprovação da PEC 215. O quadro se completa, por fim, com a CPI da Funai, que contra todas as provas e depoimentos em contrário, contará com votos suficientes dos ruralistas e seus aliados, entre eles os deputados do PSC do general Peternelli, para aprovar um relatório que, ao que tudo indica, promoverá mais um espetáculo de horrores criminalizando e indiciando mais de 100 pessoas entre lideranças indígenas, quilombolas e antropólogos.
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Marcha rumo ao Palácio do Planalto. Foto de Fábio Nascimento / MNI