O veneno está no ar: O golpe contra a saúde pública brasileira

Por Talita de Fátima Pereira Furtado Montezuma, no Estado de Direito

A saúde, direito constitucionalmente garantido, tem como princípios a prioridade às medidas de prevenção e de precaução: em caso de incerteza, não arrisque. Falar em Constituição em tempos de crise parece soar obsoleto, e a proteção dos nossos direitos conquistados em décadas de mobilização social parece se diluir pelo ar – em tempos de cenários confusos, de crise de significados, de ódio desavergonhado, o horror da força econômica nos rouba mais uma batalha, fazendo do controle de endemias um perverso mote para o golpe contra a segurança e a saúde da população: trata-se da autorização dada, por meio do art. 1, §3º, inciso IV, da recente Lei 13.301/2016, para utilização de mecanismos de controle do mosquito Aedes aegypti via pulverização aérea de substâncias químicas. Ou seja, além do mosquito, o veneno também está no ar.

Aqui, alguns comentários.

Doenças vetoriais causadas pelo Aedes aegypti relacionam-se com a falta de políticas de saneamento básico e ambiental. As metas de universalização do serviço parecem cada vez mais tímidas e distantes das prioridades públicas, enquanto que não coincidentemente os bairros pobres apresentam o maior número de notificações de casos de dengue, zika e microcefalia. O abastecimento irregular de água e coleta de lixo, a falta de drenagem de águas fluviais e a precariedade dos serviços de esgoto somam no pacote que conduz às endemias.

A ineficiência do controle do mosquito por pulverização do Malathion, um conhecido agrotóxico largamente usado no Brasil, já foi apontada por estudos realizados em 1995[1], que mostraram que a aplicação do inseticida provocou a mortandade, no interior das residências, de uma média de apenas 13% dos mosquitos adultos, contra melhores índices de controle provocados apenas por campanhas educacionais. A alerta foi feita exaustivamente pela comunidade científica.

Pulverização aérea

Pulverização aérea é uma técnica utilizada pela indústria do agronegócio para difundir, em larga escala, os venenos necessários para as grandes monoculturas de commodities. Deixam 32% dos agrotóxicos pulverizados retidos nas plantas; outros 49% vão para o solo e 19% vão pelo ar para outras áreas circunvizinhas da aplicação[2]. A pulverização urbana seria a utilização de aviões para dispersar o “fumacê” de agrotóxicos e outros venenos utilizados no controle do mosquito – apenas adultos, já que a técnica não enfrenta as larvas e ovos, núcleo do problema.

Na técnica, “deriva” consiste no deslocamento das substâncias aplicadas para além da “fronteira” da área de aplicação. Depende de condições climáticas, dos ventos, temperatura, velocidade da aplicação dentre outros fatores extremamente variáveis, embora a indústria se sustente no mito da segurança. Estudos apontam que a pulverização já levou agrotóxicos para distâncias de 32km da área que deveria ser aplicada[3]. Em 2013, Rio Verde/GO viu uma aeronave de pulverização agrícola atingir uma escola municipal e causar, em único episódio, 93 casos de intoxicação por agrotóxicos. A indústria minimiza o impacto destes eventos chamando-lhes de “incidente”.

Agrotóxicos são produtos químicos responsáveis pelo dobro dos casos de intoxicação humana entre 2007 e 2014, além de outras doenças, dentre as quais as má formações congênitas, doenças de pele, hepatológicas e câncer[4]. Desde 2008 somos campeões mundiais no seu consumo. Apenas em 2013, os produtores brasileiros compraram 10 bilhões de dólares em agrotóxicos – isentos de IPI, PIS, COFINS e, em grande parte dos Estados, de ICMS. Nós pagamos a conta: para cada dólar gasto em agrotóxicos, 1,28 dólares devem ser gastos pelo SUS para custear o tratamento apenas com as intoxicações[5].

Vencidas as fronteiras da responsabilidade, foi autorizada a pulverização por via aérea de venenos químicos sobre as populações urbanas, e a indústria comemorou

A celebrada expansão da fronteira agrícola brasileira, um golpe já antigo sobre a agricultura familiar, trouxe consigo o crescimento da indústria de aviação agrícola que, em 2012, comemorava a segunda maior frota do mundo[6]. E foi o próprio Sindag –  Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola, cuja especialidade em saúde pública parece questionável, que “sugeriu” a emenda que incluía o controle do inseto por pulverização na Lei 13.301/2016[7].

A Lei 13.301/2016 não traz uma só palavra sobre saneamento ambiental. Em 2009, o Parlamento Europeu aprovou a diretiva nº 128/2009, que estabeleceu que a pulverização aérea de pesticidas prejudica a saúde e o ambiente, e restringiu a prática na Europa. Em 08.04.2015, o Instituto Nacional do Câncer manifestou sua preocupação com a prática de pulverização aérea de agrotóxicos no país.[8] Pesquisadores em Saúde elaboraram Nota Técnica demonstrando preocupação com a autorização de pulverização urbana[9]. Foram desconsiderados. Por enquanto, o Sindag ganhou esta, e olhamos para o céu preocupados, mas não imobilizados pelo que “vem de cima”.

*Talita de Fátima Pereira Furtado Montezuma, advogada e pesquisadora, mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará, membro do Núcleo Tramas – Trabalho, Saúde e Ambiente/UFC e da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAAP/CE.

Notas:

[1] CASTLE, T. et al. Absence of impact of aerial malathion treatment on Aedes aegypti during a dengue outbreak in Kingston, Jamaica. Rev Panam Salud Publica/Pan Am J Public Health 5(2), 1999 – 100-105 apud Nota informativa contendo esclarecimentos sobre pulverização aérea e o controle de endemias, disponível em < https://www.abrasco.org.br/site/2016/04/nota-contra-pulverizacao-aerea-de-inseticidas-para-controle-de-vetores-de-doencas/>, acesso realizado em 11.07.2016.
[2]CHAIM, Aldemir. Tecnologia de aplicação de agrotóxicos: fatores que afetam a eficiencia e o impacto ambiental. In: SILVA, Celia Maria Maganhotto de Souza; FAY, Elisabeth Francisconi (Orgs.). Agrotoxicos & ambiente. Brasilia: Embrapa; 2004.
[3] Idem, ibiden.
[4] Disponível em < http://abrasco.org.br/dossieagrotoxicos/> acesso realizado e 11.07.2016.
[5] Disponível em < http://bvssp.icict.fiocruz.br/pdf/25520_tese_wagner_25_03.pdf>, acesso realizado em 11.07.2016.
[6] Disponível em < http://www.jornalpreliminar.com.br/noticias/aviacao-agricola-brasileira-ja-e-a-segunda-maior-do-mundo>, acesso realizado em 11.07.2016.
[7] Disponível em <http://www.cisoja.com.br/index.php?p=noticia&idN=26991>, acesso realizado em 11.07.2016.
[8] Ver a Nota na íntegra em <ttp://www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/comunicacao/posicionamento_do_inca_sobre_os_agrotoxicos_06_abr_15.pdf>, consultado em 08.05.2015.
[9] Nota informativa contendo esclarecimentos sobre pulverização aérea e o controle de endemias, disponível em < https://www.abrasco.org.br/site/2016/04/nota-contra-pulverizacao-aerea-de-inseticidas-para-controle-de-vetores-de-doencas/>, acesso realizado em 11.07.2016.

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