No Sul21
À medida que a poeira levantada contra a presidenta Dilma vai baixando, os motivos do golpe contra ela perpetrado, a par da fragilidade das razões éticas e jurídicas invocadas contra ela, está revelando que as próprias causas alegadamente existentes para interrompem o seu mandato, conferido democraticamente pelo povo, estão recebendo um efeito bumerangue devastador.
Comprometem muito mais as/os golpistas do que ela. O roto nem pode mais rir da descosida, pois só ele cada dia se mostra e prova como o único rasgado. Na edição de 18 deste julho do Estadão, há uma notícia emblemática a respeito desse fato:
“O empresário Laodse de Abreu Duarte, um dos diretores da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), é o maior devedor da União entre as pessoas físicas. Sua dívida é maior do que a dos governos da Bahia, de Pernambuco e de outros 16 Estados individualmente: R$ 6,9 bilhões. Laodse – que já foi condenado à prisão por crime contra a ordem tributária, mas recorreu – é um dos milhares de integrantes do cadastro da dívida ativa da União, que concentra débitos de difícil recuperação.”
Uma pessoa deve à União e, portanto, a cada um/a leitor/a desse texto, a cada brasileira/o, um valor superior ao da dívida de 19 Estados da Federação. Mais do que a metade dos Estados brasileiros.
Esse cidadão é diretor da FIESP, uma poderosíssima entidade empresarial do país que, como se sabe, se posicionou sempre favorável à queda da presidenta. Entidades empresariais como essa não cansam de se autoproclamarem fiéis à democracia, são o verdadeiro motor do progresso do país, do prestígio interno e externo alcançado pelo Brasil, do quanto a administração pública, comparada com o seu empreendedorismo, é ruim, atrapalha, é vítima de um gigantismo burocrático atrasado e inoperante, alheio aos novos tempos, tendentes ao crescente fortalecimento da liberdade de iniciativa, da privatização dos serviços públicos, pois essa é que sabe gerar e poupar riqueza.
É por essa incompetência do Estado, de acordo com esse raciocínio empresarial, que direitos humanos fundamentais sociais como saúde, educação, segurança, alimentação, moradia, e outros, são tão desrespeitados aqui. Se isso tudo fosse entregue à iniciativa privada a realidade seria outra e bem melhor.
É o caso de se perguntar ao Laodse e aos seus companheiros de direção da FIESP, como conseguem explicar – já que justificar é impossível – antes de tudo, mais do que o crime de sonegar imposto, a ausência completa de idoneidade moral dele e da entidade da qual participa como diretor, para proclamar como causa de sua iniciativa golpista, os alegados desvios de conduta da presidenta, inclusive sob aspecto ético; depois, de que recursos um Estado acusado de mau prestador de serviços públicos pode se valer, se o dinheiro necessário para essa prestação, é furtado exatamente por quem tem a obrigação de sustentar o seu custo, pela via dos tributos.
Afinal de contas, quase sete bi são quase sete bi. Isso cobriria grande parte do custo necessário para construir e equipar hospitais, curar doentes, construir escolas, educar a juventude, alimentar quem tem fome, garantir casa a quem não tem teto, pagar desapropriações de terra para quem tem direito à reforma agrária, defender índias/os e quilombolas contra o esbulho branco e latifundiário das suas terras.
Mais do que ninguém as empresas sabem defender o lucro como um direito de propriedade “natural”, necessário, legal e justo da sua atividade, uma forma lícita de renda, garante da reprodução de sua riqueza. Se isso é tão natural para ela, por que o imposto, indispensável a fins não individuais ou de grupo como os dela e, por isso mesmo, ética e juridicamente muito mais justos, deve ser sonegado? A resposta da sonegação pode ser, cínica e hipocritamente, a de tais fins só lhe interessarem quando eles renderem algum dinheiro, alguns deles sendo até contrários aos privilégios com que a mesma garante violação de direitos sociais.
A chamada liberdade de iniciativa, assim, se autoabsolve por não pagar o que deve, embora, numa das suas mais características contradições, seja muito exigente e usurária na defesa do sagrado dogma econômico do respeito que lhe é devido por seus créditos. Já que a lei, mesmo a do Código Penal, muito raramente a alcança, usa e abusa do seu poder, nisso sentindo-se autorizada até para depor uma presidenta.
A segunda edição brasileira de “Anatomia do poder” de John Kenneth Galbraith é de 1986, mas a sua análise crítica do poder, se fosse feita hoje, retrataria fielmente o que está acontecendo no Brasil. Ele poderia dizer ao Laodse, à FIESP e a toda aquela multidão que foi as ruas pedindo a queda da presidenta e a volta da ditadura, o seguinte:
“Aos jovens ensina-se que numa democracia todo o poder emana do povo. E que num sistema de livre iniciativa toda autoridade repousa na soberania do consumidor, que opera através do mecanismo impessoal do mercado. Oculta-se, desta maneira, o poder público da organização – do Pentágono, da indústria bélica, de outras empresas e dos grupos de pressão sobre o legislativo (os lobbyists). Dissimulado de maneira simular pela mística do mercado e da soberania do consumidor é o poder das grandes empresas para determinarem ou influenciarem os preços e os custos, subornarem ou subjugarem políticos e manipularem as reações dos consumidores. Mas, ao final, torna-se visível que as organizações realmente influenciam o governo, dobram-no, e com ele o povo, à sua vontade e aspirações. E também que essas grandes empresas não estão subordinadas ao mercado; pelo contrário, o mercado, que supostamente as controlaria, torna-se em parte um instrumento em suas mãos para fixarem seus preços e receitas. Como tudo isso conflita com o condicionamento social, e então revelado, parece profundamente ilegítimo.” (São Paulo: editora Pioneira, p. 12 e 13)
Como ilegítimo tem sido todo o processo do golpe perpetrado contra a presidenta Dilma.
*Jacques Távora Alfonsin é Procurador do Estado aposentado, Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.