Indignai-vos, acadêmicos

Por Douglas Carvalho Ribeiro e Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa, em Justificando

“Eu desejo a todos, a cada um de vocês, que tenham seu motivo de indignação. Isto é precioso” [1]. Com essa frase, Stéphane Hessel (1917-2013) conclama, tanto a sua geração, quanto as futuras, a manter acesa a chama da indignação perante situações de injustiça e exceção. Para quem não conhece esse autor, vale a pena nos determos por alguns instantes em sua interessante história.

O ano era 1940 quando as tropas do regime nacional-socialista alemão invadiram a França. O Marechal Philippe Pétain, então vice-primeiro ministro, foi alçado à condição de chefe de Estado, depois da decisão de permanecer na França ocupada. A sede do governo foi transferida de Paris para a cidade de Vichy que, historicamente, ficou conhecida como símbolo do colaboracionismo francês em relação ao nazismo. Entre as medidas tomadas pelo governo Pétain, que vão desde a entrega de mais de três quintos do território francês aos alemães até a deportação forçada de judeus, nem mesmo o tradicional lema da República Francesa – Liberté, Egalité, Fraternité (Liberdade, Igualdade, Fraternidade) – foi poupado, sendo substituído por Travail, Famille, Patrie (Trabalho, Família, Pátria).

Contra o colaboracionismo, foi organizado o Conselho Nacional da Resistência, que contava como um de seus líderes o alemão naturalizado francês, o senhor S. Hessel, o qual, como legado de sua atividade de oposição, escreveu, em 2010, o ensaio “Indignai-vos”. Interessante é o fato que o livro relata tanto histórias sobre sua época de resistência, quanto apresenta perspectivas de recuperação daquele espírito de contestação frente aos problemas do mundo contemporâneo. Segundo o autor, quando nos indignamos, como ele próprio o fez em relação ao nazismo, nos transformaríamos em militantes fortes e engajados. E assim, nos uniríamos a uma corrente histórica – “e a grande corrente da história prossegue graças a cada um de nós” [2].

O regime de Vichy acabou, tendo vencido os aliados; contudo, o mesmo não pode ser dito da onda conservadora. Alguns afirmam que há um ressurgimento de uma determinada forma de conservadorismo em um mundo marcado pela globalização e pelo pluralismo ético, no qual não se pode falar de apenas uma forma específica de vida boa. Outros dirão que essa onda nunca acabou: basta observarmos os diversos regimes ditatoriais vivenciados na América Latina na segunda metade do século XX, ou até mesmo as formas de neutralização da oposição política praticadas tanto nos Estados Unidos, como na União Soviética à época da Guerra Fria.

A indignação da qual fala Hessel, perante um estado de coisas marcado pelo desrespeito à alteridade e pela perda sistemática de direitos é, portanto, um assunto atual. Em que pese a França de 1940 e o Brasil de 2016 se diferenciarem de forma substancial, temos muito o que aprender com aquela experiência histórica. Pensemos nesse aprendizado enquanto forma específica de uso do passado [3], isto é, a partir da afirmação de que seria possível apreender as formas pelas quais aquele grupo de resistência lidou com problemas próprios da conjuntura política daquela época, em um momento de extrema dificuldade.

O conjunto dos princípios e valores da resistência de outrora muito tem a nos ensinar. Não poderia ser mais atual a afirmação de Stéphane Hessel:

“Precisamos nos manter vigilantes, todos juntos, para que esta continue sendo uma sociedade da qual nos orgulhemos; não a sociedade dos imigrantes sem documento, das expulsões, das suspeitas aos imigrantes; não a sociedade na qual sejam questionadas as aposentadorias, os direitos adquiridos da Previdência Social; não a sociedade na qual a mídia está nas mãos dos ricos – todas essas coisas que teríamos recusado avalizar se fôssemos os verdadeiros herdeiros do Conselho Nacional da Resistência” [4]

Motivos de indignação no cenário político atual não faltam. A depravação da legalidade democrática em mero formalismo, com a única finalidade da neutralização do dissenso político, bem como o risco iminente da desconstrução do Estado de bem-estar social vislumbrado pelo Constituinte de 1988, são exemplos de perigos engendrados pela atual gestão interina. Se, por um lado, a indignação tem uma vertente negativa, associada à experiência da degradação social, por outro é o motor que impulsiona a resistência e a transformação. Na França de Vichy, a resistência era composta, sobretudo, por intelectuais, trabalhadores, sindicatos, partidos de oposição, e por todos aqueles que arriscavam suas vidas, inclusive fora de seu próprio país, praticando de forma clandestina a luta pela democracia. No Brasil pós-afastamento de Dilma Rousseff, estamos convencidos de que a resistência deve provir das mesmas fontes. Mas uma delas nos é especialmente cara: a Universidade.

A atual gestão do governo federal tem se orientado no sentido de, reiteradamente, desprover de recursos de subsistência as instituições de ensino, assim como seus alunos. No que diz respeito às universidades federais, a previsão de cortes atinge a marca de 45%, bem como a redução em 20% das bolsas de iniciação científica por parte do CNPq [5]. Já em relação às universidades particulares, houve a redução de vagas nos programas de financiamento e de bolsas, tais como Fies e ProUni [6], inviabilizando, assim, o amplo acesso ao ensino superior. Soma-se a isso, ainda, um problema que afeta a ambas, relativo à suspensão de cerca de 3000 bolsas de pós-graduação da CAPES [7], como também à redução drástica do programa Ciências Sem Fronteiras, afetando com isso o desenvolvimento regular da pesquisa científica no país.

A quem interessa, portanto, o sucateamento de nossas universidades? Só pode ser àqueles que têm medo da resistência! O governo interino tenta, a todo momento, se blindar de qualquer ato que questione sua legitimidade, assim como de suas políticas. Se manifestações pacíficas no âmbito dos estádios de competição olímpica provocaram tamanha mobilização do aparato repressivo oficial, imaginemos, pois, a hipótese de a Universidade, valendo-se de seu potencial crítico, colocar em xeque as medidas que, de forma geral, vulnerem a população como um todo. Contra esse potencial crítico, o corte de verbas promove simplesmente a paralisia estrutural das atividades que nem mesmo uma repressão mais violenta conseguiria provocar.

A Universidade, no entanto, não tem se valido de seu potencial de centro da resistência, sendo minoria, nesse espaço, os grupos de mobilização contra a atual conjuntura. O que se esperava da comunidade acadêmica brasileira, em geral, era um grito uníssono de indignação. Todavia, esse grito tem sido contido e reprimido por diversas formas de constrangimento, seja pela via da coação financeira ou moral. Caso esse grito não saia logo, o futuro que se aproxima é de um regresso, talvez irrecuperável, em relação à autonomia universitária, ao progresso da pesquisa e aos próprios direitos sociais que dependem dos esforços universitários, tais como saúde e educação. Amigos da comunidade acadêmica: indignai-vos.

Douglas Carvalho Ribeiro possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2014). Atualmente é mestrando no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG.
Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2014). Atualmente é mestrando no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG.

REFERÊNCIAS

1 HESSEL, Stéphane. Indignai-vos. São Paulo: Casa da Palavra, 2011, p. 11.
2 HESSEL, op. cit., p. 11.
3 Sobre essa metodologia historiográfica, ver, por exemplo: SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do Passado. Um estudo de apropriações da Antiguidade sob o regime de Vichy (1940-1944). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007. 222p.
4 HESSEL, op. cit., p. 9.
5 Vide em http://g1.globo.com/educacao/noticia/governo-anuncia-corte-de-20-das-bolsas-de-iniciacao-cientifica.ghtml.
6 Vide em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governo-suspende-novas-vagas-para-pronatec-e-fies,10000052863
7 Vide em http://oglobo.globo.com/sociedade/capes-tem-3-mil-bolsas-de-pos-graduacao-suspensas-19823223

Comments (1)

  1. A unidade de ação da resistência na França foi conquistada graças à clareza de que havia um inimigo a ser derrotado. Tratou-se, portanto, de um entendimento mútuo, de uma compreensão compartilhada e de um acordo entre os que se opunham à ocupação. Não havia um inimigo nítido e objetivo (a não ser os nazistas em pessoa), pois o principal inimigo era a diversidade de níveis de adesão à ocupação nazista. Entre autoridades francesas e cidadãos, uns estavam mais de acordo com os ideais nazistas, outros, menos; uns aderiram integralmente às práticas fascistas e outros se opunham radicalmente a elas. Em meio a um quadro complexo de posicionamentos entre os franceses, foi possível, ainda assim, construir a unidade entre os resistentes. Acredito que hoje, no Brasil, o desafio seja esse. Como construir uma unidade entre os resistentes quando parte representativa do PT (o mais importante partido de esquerda da América) não vê um inimigo naquilo que Vichy representa? Como estabelecer uma aliança sem o entendimento prévio (e consensual) do que deve ser derrotado e de que forma? Afinal, para voltar ao poder, importantes lideranças do PT abraçarão Pétain, afirmando que aqui não há inimigos. Haverá reconciliação – mesmo antes do fim da ocupação – se isso significar uma oportunidade eleitoral. E afinal, se o PT não o fizer, que outra força política tem condições de vir a administrar o Estado para que este tome um rumo mais progressista? Para construir a unidade de esquerda, quem vai abrir mão do que?

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