No Cimi
A Relatora Especial das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, apresentou em Genebra, na Suíça, o relatório da visita ao Brasil realizada no início de março deste ano. O governo brasileiro, conforme informações da delegação de lideranças indígenas presente na 33ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (UNHRC), iniciou uma operação para desconstruir o documento, que conclui: “No atual contexto político, as ameaças que os povos indígenas enfrentam podem ser exacerbadas e a proteção de longa data de seus direitos pode estar em risco”.
Para chegar a tal entendimento, a Relatora visitou os estados do Mato Grosso do Sul, Pará e Bahia. Ouviu lideranças indígenas, visitou as comunidades e esteve com representantes dos três poderes da República, além de organizações ligadas ao agronegócio. “Nos oito anos que se seguiram à visita de meu predecessor (James Anaya), há uma inquietante ausência de avanços para a implementação das recomendações do Relator Especial e na solução de antigas questões de vital importância para os povos indígenas”, diz Victoria em sua conclusão da visita.
Não foram apenas relatos e denúncias que levaram a Relatora a afirmar que os indígenas estão em “status de marginalização” no país, envolvendo o que chama de “sérias violações aos seus direitos”. Menos de 48 horas depois da Relatora ter visitado o tekoha – lugar onde se é – Kurusu Ambá, no Mato Grosso do Sul, o povo Guarani e Kaiowá que vive na terra indígena foi duramente atacado por pistoleiros. Além disso, parlamentares da bancada ruralista da Assembleia Legislativa do estado fizeram ataques na imprensa à Relatora.
“(O Brasil deve) iniciar um inquérito nacional independente e transparente sobre a violação dos direitos dos povos indígenas. Tal deveria ser implementada em cooperação com os povos indígenas, objetivando transformar a relação do Estado com eles em uma relação baseada no respeito, justiça e autodeterminação”, aponta Victoria. Para a Relatora, é preciso que o governo brasileiro tome medidas urgentes para enfrentar a violência e discriminação contra os povos indígenas. No entanto, Victoria afirma que para isso outras medidas devem ser observadas.
Instituições públicas como a Fundação Nacional do Índio (Funai) devem ser fortalecidas, demarcar e proteger as terras indígenas, garantir a consulta prévia, livre, informada e de boa-fé dos povos indígenas com relação aos impactos dos grandes empreendimentos – respeitando os protocolos e consentimentos inerentes a cada povo, entendendo que para cada um existe entendimentos distintos. Outro ponto destacado nas conclusões do relatório é o acesso à Justiça, que precisa ser facilitado aos indígenas. Victoria faz críticas às autoridades públicas brasileiras, que para ela precisam de capacitação para tratar dos direitos dos povos tradicionais.
“(Capacitação) inclusive para altas autoridades do Poder Executivo e juízes de primeiro grau, considerando sua inapropriada aplicação de doutrinas que negam direitos”, pontua a Relatora em suas conclusões. Victoria entende que os povos indígenas são considerados pelo Estado brasileiro como um peso ou “um obstáculo para o desenvolvimento nacional (…) suas contribuições para a sociedade brasileira deveriam ser amplamente reconhecidas, e devidamente apreciadas e celebradas”, defende a Relatora.
Recomendações
A Relatora da ONU organiza as recomendações ao Estado brasileiro em sete pontos: 1. Direito à vida, violência e discriminação racial; 2. Direitos Territoriais; 3. Autodeterminação, dever de consultar e consentimento livre, prévio e informado; 4. Impactos de projetos de desenvolvimento; 5. Acesso à justiça; 6. Capacidade dos órgãos governamentais; 7. Recomendações para outros atores. Victoria espera que o Brasil embarque “num já tardio processo inclusivo de construção de Estado com os povos indígenas, baseado nas premissas de relações respeitosas e justas com povos autodeterminados”.
No primeiro ponto se destacam medidas para proteger lideranças indígenas culturalmente adequadas, investigações sobre todos os ataques e assassinatos sofridos pelos povos indígenas, atenção especial às taxas alarmantes de suicídios, a crescente violência contra a mulher e a adoção ilegal de crianças indígenas. A relatora recomenda ainda que o Brasil realize uma campanha pública voltada “à eliminação do racismo, discriminação, discursos de ódio e violência contra os povos indígenas”. Parte de todas as recomendações de Victoria foram feitas por seu predecessor, James Anaya.
A Relatora demonstrou especial atenção ao tratar dos direitos territoriais. Victoria aponta que os estados do Mato Grosso do Sul, Bahia, Santa Catarina e Rio Grande do Sul necessitam de urgentes medidas contra o impasse nas demarcações – índices de violência, racismo, confinamento em reservas e ausência de direitos básicos nestes estados tomam mais da metade dos informes que chegam ao público. A Relatora destaca ainda a necessidade do governo brasileiro desenvolver estratégias junto aos indígenas para evitar a judicialização das demarcações, incluindo a proteção das terras tradicionais invadidas por madeireiros, grileiros e demais grupos criminosos. “Complete todos os processos de demarcação (…) em particular aqueles ameaçados por projetos de desenvolvimento, expansão do agronegócio e atividades de extração de recursos naturais”, recomenda a Relatora.
Outro chamado de Victoria ao Estado brasileiro envolve a aplicação das condicionantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol para ordens de despejos dos povos indígenas ou a paralisação dos procedimentos de demarcação. “O STF deve continuar aceitando os pedidos de suspensão de reintegrações de posses para garantir que julgamentos futuros sobre os direitos dos povos indígenas sejam inteiramente consistentes com os padrões nacionais e internacionais de direitos humanos”, explica. Para a Relatora, a inaplicabilidade das condicionantes para as demais terras indígenas não é uma interpretação, mas uma limitação inerente ao processo e Raposa Serra do Sol.
Autodeterminação: um compromisso assumido
Victoria convocou o governo brasileiro para que assuma o compromisso firmado na Conferência Mundial dos Povos Indígenas e implemente no país a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Na Declaração a autodeterminação dos povos indígenas é um direito que deve ser respeitado, portanto todas as ações do Estado que os impacte devem passar por consulta e consentimento livre, prévio e informado – também definidos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da qual o Brasil é signatário desde 2004.
Autodeterminação envolve ainda outros aspectos da vida diferenciada dos povos indígenas. ”O judiciário, Legislativo e Executivo considerem com urgência, e em colaboração com os povos indígenas, a eliminação das barreiras que impedem os povos indígenas de realizarem seu direito à justiça e garantam que recursos adequados sejam disponibilizados para esse fim”, aponta a Relatora em suas recomendações. Victoria acredita que o Estado brasileiro deve reconhecer seus erros com estes povos, reparando violações aos seus direitos humanos.
O governo de Michel Temer levou ao Congresso Nacional para aprovação o orçamento da União para 2017. Para a Funai está programado um corte de 30%. A Relatoria da ONU não concorda, e recomenda o contrário: ”Há uma necessidade de rever os cortes propostos ao orçamento da FUNAI e garantir que as representações locais da FUNAI não sejam alvo de tais medidas. Os escritórios locais deveriam ter recursos adequados para poder fornecer os serviços básicos com os quais outros órgãos do Estado dependem, assim como os povos indígenas, inclusive aqueles em isolamento voluntário”.
Nesse sentido, a relatora recomenda o fortalecimento independente e participativo do Conselho Nacional de Política Indigenista, criado no final de 2015, para que os povos indígenas tenham mais incidência junto ao governo federal no que tange a importância dos órgãos estatais destinados a efetivar seus direitos. “O Conselho Nacional de Política Indigenista deveria participar da indicação do Presidente da Funai, que deveria ter competência técnica e independência política para cumprir com o mandato da Fundação”, recomenda Victoria.
BNDES: salvaguardas indígenas
A usina de cana do preso pela Operação Lava Jato José Carlos Bumlai, no Mato Grosso do Sul, fica sobre o tekoha Apyka’i. Em julho, cacique Damiana Guarani e Kaiowá e sua aldeia mais uma vez foram despejadas da terra tradicional, por força de uma reintegração de posse, para a beira da rodovia, onde muitos da comunidade já morreram. A usina recebeu vultuosos recursos do BNDES. O relatório recomenda ao “Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) a alinhar suas políticas com as de outras instituições financeiras internacionais como as da Corporação Financeira Internacional, e a desenvolver salvaguardas específicas voltadas a assegurar que não se financie projetos que colocam um risco para os direitos dos povos indígenas”.
Todavia, a Relatoria da ONU olha também para a atuação no Brasil do próprio organismo internacional. “A equipe das Nações Unidas no país deveria assumir um papel proativo na promoção da conscientização sobre e respeito pelos direitos dos povos indígenas no Brasil e auxiliar o Governo na realização de seus deveres de respeitar, proteger e cumprir com esses direitos. Em cooperação com e guiado pelos povos indígenas, a equipe do país deve apoiar os povos indígenas em seus esforços para reivindicar e realizar seus direitos humanos constitucional e internacionalmente reconhecidos e a participar em processos relevantes do Conselho de Direitos Humanos como o da revisão periódica universal”, enfatiza uma das recomendações da Relatora.
A Relatora Especial reitera as recomendações do Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos, em missão no Brasil este ano, com relação à necessidade de rever o uso do mecanismo de suspensão de segurança no contexto de comunidades vulneráveis afetadas por projetos de desenvolvimento. Reiterou ainda as recomendações aceitas pelo país na revisão periódica universal de 2012 com relação à necessidade de garantir proteção aos líderes dos povos indígenas e defensores de direitos humanos lutando por seus direitos.
Por fim, Victoria salienta em suas recomendações a centralidade da implementação delas “bem como as recomendações do anterior relator sobre sua visita ao Brasil em 2009 e do Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos e do processo de revisão periódica universal deveriam ocorrer com a plena e efetiva participação dos povos indígenas”.
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Contribuição de Combate Racismo Ambiental: leia o Relatório completo AQUI.