Os índios que abalaram Brasília: “Martírio”, de Vincent Carelli

Por Jotabê Medeiros, no Farofafá

Vincent Carelli mora em Olinda há 16 anos. É um dos mais atuantes documentaristas brasileiros – na verdade, é francês: nasceu em Paris, em 1953, filho de um artista plástico brasileiro e uma professora francesa, e chegou ao Brasil com 5 anos. Seu novo filme, Martírio, exibido na semana passada no Festival de Brasília, virou o epicentro de um grande debate nacional e uma nova polêmica: saudado pelo público emocionado após a exibição, acabou preterido como melhor filme pelo júri oficial (o prêmio foi para A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha) e levou o prêmio especial do júri, que alguns consideram “prêmio de consolação” (“jogou o clima da noite no chão”, escreveu o crítico Luiz Zanin Orichio). Em compensação, saiu consagrado como melhor longa-metragem do festival pelo júri popular.

“Vamos cumprir as agendas, por conta do escopo da difusão, mas a ideia é liberar geral na internet”, afirma Carelli sobre a trajetória que Martírio começa a cumprir agora, e que lembra de certa forma a de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, também escanteado por júris oficiais, mas uma das obras de maior repercussão na história recente do cinema brasileiro. “Esse filme tem que ser tratado de forma diferenciada. Tem que chegar ao máximo de pessoas que puder.”

O documentário, cuja ambientação geográfica se situa no Mato Grosso do Sul, entre o município de Dourados e o rio Guatemi, trata do genocídio progressivo dos índios Guarani Kaiowá desde a Guerra do Paraguai. Carelli começou a filmar em 1988 e terminou em 1999. Voltou lá com as notícias de novos massacres, em 2012 e 2013, e concluiu Martírio, que integra uma trilogia – o primeiro filme foi Corumbiara, de 2009 (vencedor do Festival de Gramado naquele ano), e o último será Adeus, Capitão, sobre índios que enriqueceram e ficaram “milionários”.

A primeira exibição pública do filme em São Paulo será na abertura do festival Aldeia SP – Bienal de Cinema Indígena. Totalmente dedicado ao cinema produzido por indígenas, o festival terá Martírio e outros dois filmes de não-indígenas (O Abraço da Serpente Xapiri) como convidados especiais de abertura. A première acontecerá na sala Lima Barreto do Centro Cultural São Paulo (CCSP), no próximo dia 7, sexta-feira, às 15h. Vincent Carelli estará debatendo na abertura numa roda de conversa com o ex-ministro da CulturaJ uca Ferreira, o cientista social da Universidade de Coimbra e jornalista Felipe Milanez e o líder indígena Ailton Krenak (idealizador da Aldeia SP), com participação também de 12 cineastas indígenas especialmente convidados para o festival.

O diretor conversou com exclusividade com FAROFAFÁ.

Jotabê Medeiros: Qual será a trajetória do filme de agora em diante? Vai a outros festivais?

Vincent Carelli: Vai a vários. Está agora programado para ir a cinco festivais. Estou terminando a versão em inglês para festivais internacionais, que estão pedindo. Roterdã (Holanda) e Mar del Plata (Argentina) pediram para ver o filme. Não sei ainda se vão mostrar.

JM: Não há a chance de disputar o Oscar de documentários?

VC: (Risos) Sei lá. Acho que não. Tô com muito trabalho e tô priorizando a distribuição nacional. O Oscar não é bem minha praia. Vamos inscrever em Berlim.

JM: A exibição do filme no festival Aldeia SP será a primeira apresentação ao público de São Paulo, não?

VC: Sim. Será uma apresentação para um público pequeno. É uma sala pequena, especialmente para o público que acompanha o cinema indígena. O festival é muito importante, porque conta com a presença dos índios, porque trata da conscientização de alunos de escolas públicas, tem toda essa dimensão, que é bem bacana. O filme tem demanda de festivais para os próximos dois meses. Vamos cumprir essas agendas, por conta do escopo da difusão, mas a ideia é liberar geral na internet. Esse filme tem que ser tratado de forma diferenciada. Tem que chegar ao máximo de pessoas que puder.

JM: A sua atuação como um documentarista das questões indígenas deve desagradar a muita gente nos sertões. Você nunca foi ameaçado por essas pessoas?

VC: Não. Passei mais perrengue durante as filmagens de Corumbiara (2009). Mas atravessei incólume essas viagens, espero que continue assim. Claro, sempre tomamos o devido cuidado, sempre fomos guiados. A região de Martírio é um universo muito grande, toda a área Guarani Kaiowá, uma região que foi tomada do Paraguai durante a Guerra do Paraguai. Graças à nossa boa sorte, não presenciamos nenhuma morte nos despejos que acompanhamos. A maioria deles foi adiada. A violência fica difusa. Mas são muitas mortes. Nos últimos meses, depois do ataque que os índios filmaram, o massacre do filme, houve outros 25 ataques de pistoleiros contra os índios. E já temos notícia, pelo índio Tonico Benitez, de outro. São mortos crianças, mulheres, idosos. A grande mídia não noticia nenhuma dessas mortes, só fica sabendo quem acompanha as redes sociais, que são hoje a grande saída de comunicação. Todo mundo de celular nas aldeias, todo mundo filmando as coisas. A gente incluiu algumas gravações dos celulares dos índios Mundukuru e Guarani na instalação que fizemos no segundo andar da Bienal de São Paulo, da ONG Vídeo nas Aldeias.

JM: Perguntei isso por causa de casos como o da missionária Dorothy Stang, assassinada no Pará.

VC: Lá é uma zona muito mais isolada. Na Amazônia profunda, a lei é essa.

JM: O filme teve um crowdfunding com cerca de mil pessoas participando. Quanto arrecadou?

VC: Foi algo em torno de R$ 85 mil. O Catarse fica com 13%, tivemos muito trabalho na formatação das doações, dois meses de intenso trabalho. É importante, é um belo de um instrumento e sua dimensão mais relevante é criar uma rede de pessoas interessadas em ver e difundir o filme. Para a finalização, contamos com verba do Funcultura (fundo de apoio à cultura do Estado de Pernambuco).

JM: O cinema pernambucano está no epicentro dos debates e das discussões atualmente.

VC: É porque tem um investimento sistemático já há alguns anos, e isso ia acabar revelando novos talentos, abrindo possibilidades, gerando bons resultados.

JM: Você chegou a dizer, em entrevista, que o seu filme se destina “à militância, a quem se importa”. Mas evidentemente não é apenas para a militância, não?

VC: São duas coisas: a militância e quem se importa. O filme se destina a todos que se emocionarem com o que descreve, os que se interessam, que estão dispostos a abrir seu conhecimento para essa realidade. Todos são bem-vindos. O filme pontua algumas questões do debate político em torno do problema indígena. Mas é evidente que quer sensibilizar quem puder. A questão indígena sempre fica muito restrita ao mundo dos relatórios, das pesquisas. É um reduto limitado às pessoas que trabalham com os índios. O filme amplia a possibilidade, incluindo conexões com a história do Brasil, seu impacto na vida dos índios, por isso atinge um público muito maior. É uma questão de permanente urgência, e qualquer coisa esclarecedora pode contribuir para abrir esse mundo.

JM: Você acha que seu filme foi injustiçado em Brasília? Merecia o prêmio maior?

VC: Não cabe a mim falar isso. Eu agradeço à curadoria por ter selecionado meu filme. Brasília é o centro das decisões políticas sobre a questão indígena, e o filme conseguiu irradiar uma mídia nacional. Passou pelo grande teste de recepção do público, foi além do esperado. Para quem está fazendo um filme que promove uma campanha de alerta, nada pode ser melhor que isso. E um júri é sempre a visão subjetiva de um grupo de pessoas, essa polêmica não cabe. Quem coroa a gente é o público e foi emocionante a reação. É bobagem esse negócio de ficar discutindo prêmio. O festival é uma estratégia de ampliar o nível de difusão do filme e não se pode perder essa oportunidade. Eu considero Martírio um retrato do país neste momento. Claro, não chega aos últimos acontecimentos da política, realizei em 2014 as últimas filmagens. Mas a bancada ruralista, que é personagem do meu filme, é a expressão do que a gente está vivendo hoje, com seus discursos, seus argumentos.

Vincent Carelli durante a premiação do Festival de Brasília 2016. Foto: Maria do Rosário Caetano
Vincent Carelli durante a premiação do Festival de Brasília 2016. Foto: Maria do Rosário Caetano

(Esta reportagem integra a cobertura da Aldeia SP, em parceria de FAROFAFÁ com a Bienal de Cinema Indígena.)

 

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