Em Ubatuba, comunidades tradicionais e Mata Atlântica são ameaçadas por zoneamento do governo de SP

Após audiência pública polêmica e cheia de controvérsias, mapa do novo zoneamento costeiro continua com poucas justificativas técnicas e que podem causar danos irreversíveis aos moradores e à natureza do litoral Norte de São Paulo

Por Vanessa Cancian (*) – Opera Mundi

Em alguns anos, a cidade de Ubatuba poderá perder a característica de paraíso ecológico que atrai milhares de turistas em busca de refúgio em suas praias, que estão entre as mais preservadas do Estado de São Paulo. Isso porque o governo do Estado de São Paulo está levando a cabo um processo de zoneamento costeiro no litoral Norte que compromete o futuro da região. A proposta feita sem a devida consulta com a população local, tem como objetivo abrir grandes áreas para megaempreendimentos em praias e regiões ecologicamente preservadas.

Além do viés especulativo, comunidades tradicionais já demarcadas, como o quilombo da Fazenda, de Camburi e a aldeia Boa Vista seguem sem ser sinalizadas pelo mapa, ou seja, aparecem somente como áreas verdes, o que chancela as injustiças territoriais e desconsidera o modo de vida destas comunidades, repetindo o autoritarismo do passado, que criou os parques estaduais sem sinalizar os povos e comunidades tradicionais que já estavam no local antes da consolidação dos mesmos.

Neste território de luta e resistência, o turismo de massa e a especulação imobiliária fazem com que grande parte das pessoas que frequentam o local não conheçam a diversidade cultural presente e muito menos os enfrentamentos de cada comunidade para manter-se em seus territórios. Atualmente, o município passa pela revisão do mapa do Zoneamento Econômico e Ecológico (ZEE/LN), que faz parte do Gerenciamento Costeiro (Gerco), ferramenta que define como se dá o uso, ocupação e utilização das áreas costeiras.

Em Ubatuba vivem povos e comunidades tradicionais desconhecidos da maioria dos turistas e visitantes. Quatro quilombos, duas aldeias indígenas e dezenas de comunidades caiçaras resistem à especulação imobiliária e ao turismo exploratório lutando para continuar em seus territórios. As grandes áreas ainda preservadas no município dialogam com a existência dessas comunidades, ainda que legislações ambientais arbitrárias (e aplicações de sanções injustas) também prejudiquem a todo instante os modos de vida tradicionais que ainda existem na região.

Zoneamento ecológico?

 Em audiência pública realizada no dia 24 de outubro, em Ubatuba, lideranças comunitárias, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público Estadual (MPE) e entidades ligadas à conservação costeira e aos direitos socioambientais questionaram a legitimidade do processo que irá concretizar o novo Zoneamento Ecológico e Econômico do Gerenciamento Costeiro (Gerco) do Litoral Norte do Estado de São Paulo (ZEE LN) ), que faz parte do Gerenciamento Costeiro (Gerco), ferramenta que define como se dá o uso, ocupação e utilização das áreas costeiras. Falta de informação, interesse de iniciativas privadas e um grupo setorial sem representatividade dos povos e comunidades tradicionais foram alguns dos pontos elencados pelo público que lotou o auditório no município.

A audiência pública realizada na última semana demonstrou pela voz de comunitários, ambientalistas, moradores e pesquisadores que o processo não foi construído de maneira participativa e que faltam embasamentos técnicos e justificativas para algumas mudanças no zoneamento. O Ministério Público Federal e o Estadual questionaram também a gravidade dos interesses privados que têm regido uma série de definições do ZEE/LN.

“Não se trata somente de falar em Z1, Z2, mas sim em saber o que é cada uma dessas zonas e qual a consequência de cada uma delas na vida das comunidades, ponderar os pontos positivos e os pontos negativos, colocar na balança. O que eu estou vendo é que está havendo mentiras por parte do interesse privado para trazer algumas comunidades para o lado de alguns empreendedores”, pontuou a Dra. Walquíria Imamura Pícolli, Procuradora da República.

“Existem vários setores com interesses diversos, marinas, meio ambiente, setor imobiliário… todos legítimos, desde que sejam defendidos com clareza e, sem mentiras. Agora não dá pra sair enganando a comunidade tradicional, falar em demolição, fazer promessas de desenvolvimento. O Gerco não determina a instalação de escola, emprego, saúde, luz elétrica, isso é promessinha de empreendedor que quer enganar as comunidades”, alertou a Procuradora sobre a situação alarmante de Ubatuba. Os empresários com interesses em abrir e facilitar seus empreendimentos estão dialogando diretamente com as comunidades com falsas promessas e prejudicando a legitimidade do processo.

A voz do povo chegou tarde

“Este processo participativo está chegando no final e isso é inadmissível!”, ressaltou Tami Albuquerque, do Conselho Municipal de Meio Ambiente e do Coletivo de entidades ambientalistas de Ubatuba. “O Estado ter ido esclarecer o que é o zoneamento dentro das comunidades tradicionais cinco dias antes da audiência pública é vergonhoso. Essas informações deveriam ter chegado anos atrás”, completa. Na semana anterior à audiência, a CPLA realizou quatro reuniões em comunidades cujas decisões ainda não estavam de acordo, além de não ter sanado o problema, diversas outras comunidades ficaram sem essa assistência e seguem controvérsias no mapa apresentado.  Ademais, as reuniões só foram realizadas porque as comunidades se manifestaram e ocuparam o último encontro do Gerco que tinha como finalidade avançar e aprovar o mapa sem quase nenhuma participação popular.

“É evidente também que não há representatividade neste grupo de trabalho e que ele não representa a diversidade brasileira. Faz séculos que o território do Brasil é comandado por homens brancos e para homens brancos, e isso foi perpetuado no processo. Onde estão as mulheres e a diversidade de povos e comunidades tradicionais existentes?”, questionou Albuquerque. Ela ressaltou que as cadeiras para as comunidades deveriam ter sido inseridas de toda forma e que isso prejudicou a legitimidade do processo. “Sem essa participação, como que eles podem decidir com consciência quais áreas deveriam ser eleitas para cada situação?” finalizou Albuquerque.

“De acordo com a Convenção 169 da OIT, deveria ter sido feita a consulta prévia e informada às comunidades tradicionais”, segundo explica Maria Capucci, Procuradora Geral da República. Ela salienta também que mesmo se representantes estivessem alinhados com a defesa das populações tradicionais, ainda é preciso refazer os processos de consultas para suprir o que é exigido por lei.

Em paralelo aos interesses de grandes empresários do setor da construção civil e do setor náutico, as comunidades caiçaras, indígenas e quilombolas não foram ouvidas e a falta de informação predominou durante toda a elaboração do zoneamento. Isso significa dizer que as populações que habitam a região e que possuem suas vidas diretamente ligadas ao manejo tradicional ficaram aquém das decisões importantes.

O Grupo Setorial do Gerco, que coordenou o processo junto a Coordenadoria de Planejamento Ambiental da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (CPLA) não contemplou com nenhuma cadeira os povos e comunidades tradicionais do município, ou seja, a representatividade para essas comunidades ficou anulada durante todo o decorrer do processo.

Zoneamento sem justificativas técnicas e sem respeito às populações tradicionais

Ficou evidente na audiência pública que a população presente clama por mais respeito ao meio ambiente e aos povos tradicionais. A abertura de grandes áreas para empreendimentos como se pretende na praia do Ubatumirim (no Norte de Ubatuba) é um dos pontos mais polêmicos do zoneamento. Empresários de marina e do setor da construção civil demonstraram abertamente seus interesses e o Gerco, até o momento, colocou uma grande mancha de Z4OD em uma área que já está nas mãos de uma das maiores construtoras de Ubatuba.

“Segundo trabalho da professora Celia Regina de Gouveia Souza, do Instituto Geológico do Estado de São Paulo (também ligado a SEMA), Ubatumirim é um local apontado como área de risco costeiro muito alto. E a praia do Félix é indicada como área de alto grau de erosão costeira”, como apontou Bruno Gios, Assistente Técnico do Ministério Público Federal. Bruno questionou o fato da pesquisa, que está vinculada a um instituto da própria secretaria, não estar sendo levada em conta. “Estimular a ocupação dessas áreas poderá causar consequências drásticas à praia, aos ambientes naturais e aos próprios usos de atividades antrópicas na costeira, e ambas aparecem no mapa como Z4OD”.

“Não acredito ser adequado ou coerente você fomentar a ocupação urbana em locais onde o risco de erosão costeira é muito elevado”, destacou Gios. O especialista alertou que as consequências dessa ocupação são: aumento da frequência e magnitude de inundações costeiras causadas por ressacas, comprometimento do potencial turístico da região costeira e gastos astronômicos com a recuperação das praias e reconstrução da orla marítima.

“Na região Sul de Ubatuba, na Maranduba há uma área de 170 hectares marcada no mapa como Z5, zoneamento que não prevê nenhuma porcentagem de preservação. Dentro dessa área há um polígono de 70 hectares de maciço florestal que equivale a 40% deste território”, salientou o biólogo. O especialista afirma que não há cabimento compreender toda essa região com esse zoneamento, ou seja, a precarização do ecossistema será ainda mais intensa sem considerar a área que já existe preservada.

A manutenção e garantia dos modos de vida tradicionais das comunidades em seus territórios não está sendo considerada. “Em nome do progresso”, o zoneamento costeiro desconsiderou inclusive laudos técnicos que apresentam incompatibilidade dos zoneamentos propostos com a realidade do município.

Resistência

Após a longa audiência e a evidente insatisfação da população de Ubatuba com relação ao mapa proposto pelo Grupo Setorial do Gerco, é incerto saber se a CPLA irá ou não considerar as alterações propostas. A CPLA irá concluir as audiências públicas do Litoral Norte, que inclui as cidades de Caraguatatuba, São Sebastião e Ilhabela até o dia 4 de novembro.

Mesmo aqueles que não participaram da audiência ainda podem encaminhar sugestões de mudança e os documentos devem ser protocolados pessoalmente até o dia 11 de novembro. O local de recebimento em Ubatuba é na Sede da Fundação Florestal localizada na Rua Esteves da Silva, 510, centro. Além disso, também podem ser enviadas por carta registrada para a SMA/CPLA (Av. Prof. Frederico Hermann Jr., 345, Alto de Pinheiros, São Paulo – SP. CEP 05419-010) ou por e-mail para [email protected].

(*) Da Comunicação do FCT (Fórum de Comunidades Tradicionais)

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