Após mergulhar por cinco anos num bastião conservador, socióloga constata: arrogante, esquerda desprezou os brancos empobrecidos. Eles a identificam com o poder e vingam-se no voto
Russell Hochschild, entrevistada por Álvaro Guzmán Bastida, em Contexto y Acción | Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel – Outras Palavras
O que vai acontecer depois das eleições norte-americanas de 8 de novembro? A maioria dos comentaristas liberais, no sentido anglo-saxão do termo, sonham com baixar uma grossa cortina sobre a revolta do “trumpism”’ — como um pesadelo coalhado de fanatismo e “deplorável” ignorância — após vencer o magnata nas urnas. Isso, avalia Arlie Russell Hochschild (Boston, 1940), será um erro terrível. Há cinco anos, a reconhecida socióloga, professora emérita da Universidade da Califórnia em Berkeley, vem fazendo um exame de consciência em nome do Partido Democrata. Ela lavrou suas penitências em um novo livro, Strangers in their Own Land: Anger and Mourning on the American Right (Estrangeiros em sua própria terra. Raiva e luto na direita americana).
Arlie Hochschild, que começou sua pesquisa muito antes que Trump entrasse na política, detectou uma quebra entre a direita radical anti-Estado, materializada no por então emergente Tea Party, e certa elite progressista cheia de desdém e autossuficiência. Para a socióloga, grande parte da classe trabalhadora branca, “gente decente e com preocupações bem reais”, se sente esquecida pelo Partido Democrata, ainda que este seja, em tese, seu aliado natural. “Muitos têm simpatia por Bernie Sanders. A bola está no campo dos democratas. O erro é deles: foram eles que abandonaram a classe trabalhadora” — adverte ela, em uma conversa por Skype.
Ao seus setenta anos, Hochschild decidiu deixar para trás um confortável habitat de intelectuais que compartilhavam suas ideias progressistas, para adentrar no sul profundo dos Estados Unidos. Mudou-se para o coração da Luisiana mais homogeneamente branca, cristã, rural e empobrecida, para tentar entender o que alimentava o ódio ao Estado e à redistribuição que imperavam nessa região. O resultado é um formidável retrato da direita norte-americana e daquilo que Arlie Hochschild chama sua deep story (narrativa profunda), que lhe valeu a indicação para o National Book Award (Prêmio Nacional do Livro).
Por que você decidiu embarcar nesse projeto que lhe custou cinco anos?
Há cinco anos, eu já notava uma enorme divisão nos Estados Unidos entre esquerda e direita. Essa brecha só fazia crescer, não porque a esquerda estivesse se movendo para a esquerda, mas porque a direita se tornava mais direita. Dei-me conta de que eu não entendi, de forma alguma, esse fenômeno; de que vivia num lugar habitado por gente que tampouco o entendia. Então decidi sair dali e buscar um entorno o mais diferente possível do meu. Encontrei-o no Sul, onde a direita cresceu mais rápido. A Luisiana era o supersul: branco, velho e religioso. Era o que eu queria realmente conhecer.
Meu objetivo era decifrar o paradoxo desse Estado vermelho [ou seja, republicano; por oposição aos “azuis” democratas]. Nos Estados Unidos são os Estados mais pobres, os que têm mais famílias desestruturadas, os piores sistemas de saúde e educação, e que recebem mais dinheiro do governo federal que os impostos que pagam, exatamente aqueles que se opõem com mais virulência ao Estado e que querem reduzir seu poder. Esse é o paradoxo: se você tem um problema, por que você não quer que lhe ajudem?
Tudo isso chegava ao extremo na Luisiana. Era o Estado mais pobre da União; 44% do orçamento vinha do governo federal; e ainda assim era o Estado mais pró Tea Party, o mais conservador. Pensei: “isso é perfeito!”. Desliguei meu sistema de alarme político e moral para poder escutar e tentar escalar o “muro da empatia” que me separava dessa gente. Queria averiguar o que sentiam, e por que sentiam o que sentiam. Esse era o projeto.
Você descreve sua viagem de cinco anos como a busca de uma narrativa profunda. A quê exatamente você se refere?
Esse é o conceito básico do livro. Quando perguntamos a alguém: “Quais são as suas ideias políticas?” É de se esperar que respondam falando dos seus valores e do tipo de políticas que gostariam de ver aplicadas. Mas por baixo disso há algo mais básico. Eu chamo a isso de deep story (narrativa profunda). Todos, sejamos de esquerda ou de direita, a temos. É a narrativa da vida como cada um a sente, desprovida de juízos morais e de fatos. É como um sonho, mas que parece real para uma pessoa.
A narrativa profunda da direita que subjaz a tudo o que escutei durante esses cinco anos é essa: A pessoa está numa fila, como em uma espécie de peregrinação; no final dessa fila está o sonho americano, que essa pessoa deseja e crê que merece, porque cumpriu as regras e trabalhou duro a vida toda; só que a fila não anda, e de repente as pessoas começam a ver que outros estão cortando a fila na frente delas. Isso provoca uma enorme sensação de injustiça.
Quem corta a fila nessa estória? Não tem ninguém para impedir isso?
Os que cortam a fila são os negros que, por meio de políticas de discriminação positiva, têm acesso a postos de trabalho que normalmente estavam reservados aos brancos. Antes da Affirmative Action, as políticas estatais de discriminação positiva, as mulheres não podiam ter acesso aos postos de trabalho dos homens. Agora podem. Imigrantes e refugiados… todos esses grupos.
Essa gente que espera na fila não tem, concretamente, nenhum rancor contra ninguém. Só querem alcançar o sonho americano, mas algo se interpõe no seu caminho e lhes empurra para trás. Nessa narrativa, isso é culpa de Barack Obama, que deveria vigiar a fila. Para todos então, ele seria o cara que facilita que os outros cortem a fila. Isso torna o governo federal uma imensa máquina de marginalização. “É o governo deles, não o nosso. Não quero pagar imposto para eles. Quero ficar de fora. Eu sou um estrangeiro na minha própria terra”.
Há uma outra parte nessa deep story: Enquanto a fila não anda, você vê alguém na frente se voltar para trás e dizer: “Sulistas estúpidos! Estão ferrados. Vocês são uns ignorantes”. É como uma bofetada.
O que você achou ao ouvir a Hillary Clinton chamar de “deploráveis” os eleitores de Donald Trump?
Eu gostaria de tê-la metido em um avião comigo, trazê-la a Lake Charles, Luisiana, e lhe apresentar as pessoas desses povoados, que cheguei a conhecer bastante bem; pedir-lhe que sentasse, tomasse uma cerveja, fosse pescar e conhecesse algumas pessoas dessa gente incrível que de modo algum é deplorável, ao contrário, bastante admirável, mas que vive numa verdade diferente. De fato, ela poderia fazer muito para resolver seus problemas, se se preocupasse por conhecê-los.
Você acredita que essa gente se sente ignorada pelo Partido Democrata?
Exatamente. Essa é a mensagem do livro: de que há gente decente com preocupações bem reais, que se sente esquecida. O Partido Democrata, o partido dos trabalhadores, está se desmilinguindo. Os trabalhadores abandonam o partido em massa, fazendo com que seja a esquerda que se transforme em estrangeira na sua própria terra. Não são absolutamente deploráveis. São seus aliados naturais. Muitos têm simpatia por Bernie Sanders, que chamam afetuosamente de “tio Bernie”. De fato, estamos já de acordo em muitas coisas. A bola está no campo dos democratas. O erro é todo deles: foram eles que abandonaram a classe trabalhadora.
Um dos personagens do livro, Mike, sofreu por conta de um desastre ambiental, e é muito ativo em lutas ecológicas, mas também se opõe à regulação estatal. Como essas ideias convivem?
É verdade. Mike é agora ecologista, mas também vai votar em Donald Trump. Por que ele desconfia do Estado e preferiria não pagar impostos? Creio que há três respostas no seu caso. Uma é a narrativa profunda. Ele me disse: “Eu encarno a sua metáfora”. Ele acha que o Estado seria um instrumento da sua própria marginalização. Também acredita que ele representa o Norte, sempre dizendo para o Sul o que fazer, como nos tempos da Guerra Civil, e isso não lhe agrada. E tem uma terceira razão: Mike percebe o governo da Luisiana como um instrumento a serviço do petróleo, e acha o mesmo do governo federal, que é um instrumento a serviço da indústria.
Isso se aproxima bastante de uma perspectiva progressista. Da forma como eu o entendo, as grandes empresas petroquímicas e petroleiras são as novas plantations [fazendas de escravos]. São instituições de alto investimento e enorme rentabilidade, e que compraram o governo estadual. Pagam ao governo do Estado para que ele faça a sua licitação. É como se o Estado fosse parte da empresa. Essas grandes empresas fizeram uso de uma estratégia emocional. Dizem: “Necessitamos de um bilhão e meio de dólares do dinheiro dos contribuintes para poder assentar nossas raízes aqui na Luisiana, ao invés de ir para o Texas”. Com uma pitadinha desse dinheiro distribuem alguns presentes, pagam os uniformes da equipe de futebol americano da Universidade do Estado da Luisiana, da Audubon Society para a proteção da natureza, ou então financiam um curso de ciências para o ciclo básico. E as pessoas dizem: “As empresas são bondosas. Nos dão presentes e trabalho”.
Elas constroem, no entanto, plantas altamente automatizadas que importam trabalhadores de fora, filipinos instaladores de tubulações e químicos do Instituto Tecnológico de Massachusetts. Geram pouquíssimos postos de trabalho permanentes para as pessoas da Luisiana, algo em torno de 16%, segundo a maioria das estimativas. O resto são professores, enfermeiras, funcionários públicos… Mas a empresa goza de boa reputação. Enquanto isso, é o Estado que faz o trabalho sujo das empresas. Sua função é dizer que protege as pessoas da poluição, quando de fato não as protege. Assim, as pessoas odeiam o Estado e amam as empresas.
Os progressistas chegam e perguntam, consternados: “Como você pode amar a empresa que está contaminando e odiar o Estado que poderia solucionar o seu problema?”. As pessoas não veem as coisas assim. Esse é um Estado refém. Não me estranha que elas não gostem dele. Ele está dominado, é um instrumento do petróleo.
Você mencionou as plantations, parte da longa, profunda e enraizada história da discriminação racial na Luisiana. Muitos progressistas reputam as reclamações de pessoas como os personagens do seu livro à nostalgia dos privilégios abusivos desse passado. Eles os acusam de racistas. O que estaria falhando nessa análise?
Ela é parcial e distorcida; sugere que o problema está só no Sul. Creio que é um problema nacional. E também tira os preconceitos raciais de um contexto mais amplo, a que me refiro no livro como honor squeeze, ou sufocamento cultural. Essa gente se sente abandonada pelo caminho de muitas maneiras. É uma gente religiosa numa sociedade secularizante. Não se pode dizer “Feliz Natal” em um lugar público. Tem que dizer “Boas Festas” ou só “Felicidades”. Como sulistas, sentem-se desprezados. É mais cool estar em Nova York, San Francisco, Los Angeles.
Sentem que sua atitude a respeito da família é agora ilegal no país, desde que a Suprema Corte decidiu que as mulheres têm direito a abortar em certas circunstâncias e que os gays têm direito a se casar. Tudo isso os faz se sentir demográfica, social, cultural e economicamente marginalizados. Os sentimentos raciais são apenas uma parte disso. Sentem-se em competição com os negros. Sentem que os negros subiram e eles desceram, e que eles também são agora uma minoria.
Donald Trump não tinha ainda passado para a política durante a maior parte da sua pesquisa. Como a ascensão dele, até a indicação do Partido Republicano, afetou as pessoas que aparecem no seu livro?
Quando fui a uma plenária de Donald Trump antes das primárias na Luisiana, em março desse ano, me dei conta de que havia passado quatro anos e meio estudando um monte de lenha, e que agora, com Donald Trump, estava estudando o fósforo que acenderia a fogueira. Eles se sentem estrangeiros em sua própria terra, à deriva a bordo de uma América sem rumo. Trump se apresentou como um salvador. Prometeu-lhes tudo, recuperar a dignidade. Falava por eles “Sim, vocês se sentem jogados. Caem pouco a pouco…. Eu os levantarei”. Era um fenômeno quase religioso.
No livro você descreve seu encontro com uma cantora de gospel, Madonna Macy, que lhe falou do locutor de rádio favorito dela, um jornalista extremamente conservador. O que você aprendeu ao conhecê-la?
Eu a conheci em uma reunião das Mulheres Republicanas do sudoeste da Luisiana, em Lake Charles e ela me disse “Amo Rush Limbaugh”, um popular comentarista de rádio de direita, agressivo e extremadamente conservador, provavelmente o mais popular no dial americano. Perguntei-lhe por que gostava. “Ele odeia as feminazis”, me respondeu. Então lhe preguntei: “O que é uma feminazi?”. “São essas feministas que querem ser iguais aos homens. São más, ambiciosas, egocêntricas”. Essa era a sua visão. Em seguida disse amavelmente: “Foi difícil me escutar?” e completou: “Na realidade, vejo Rush Limbaugh como alguém que me protege de pessoas como você, os liberais que acreditam que sou retrógrada e inculta, e que tenho uma atitude equivocada, que sou racista, sexista e homofóbica, e, pra completar, também gorda”. Senti que os progressistas impunham até as regras alimentares no Sul, onde se ama comida frita.
Tem outro personagem no livro, chamado Lee, que encarna o grande paradoxo porque também apoia as causas ecologistas ao mesmo tempo que as políticas antirregulação do Tea Party. Despediram-no por contaminar um estuário? Por que ele não culpa a empresa que o empregava, que continua sendo muito poderosa na Luisiana?
Trata-se de um homem que fez o trabalho sujo da empresa durante anos. Todos os dias, ao pôr do sol, derramava às escondidas um resíduo quente, tóxico e perigoso em uma via fluvial. Ele se sentia muito culpado por fazê-lo. Acabou adoecendo por causa daquilo, porque estava exposto a um produto químico tóxico. Afastou-se por doença e então o despediram por faltar ao trabalho.
Ele odiava a empresa, Axiall, por ter-lhe feito isso. Disse-me: “Minha mulher teve que esconder a pistola. Estava tão furioso pelo que me tinham feito…” Ao mesmo tempo, sentiu que o Estado não o protegia dos abusos da empresa. É a lógica que vi em toda parte: as pessoas odeiam o Estado porque recolhe impostos e, daí, se supõe que tem que fazer coisas boas, mas depois sentem que só serve para os marginalizar.
A história de Lee continuou, e ele conseguiu se vingar da empresa. Os resíduos estavam contaminando os peixes, e isso levou o governo a sugerir um limite de consumo de pescado. Os pescadores e donos de restaurante ficaram furiosos. A recomendação do Estado deixava-os sem negócio. Houve uma grande reunião com mil pessoas. Lee Sherman subiu ao palco com um cartaz que dizia: “Fui eu que derramei o resíduo tóxico na água”. Os pescadores tiveram que coçar a cabeça e dizer: “Suponho que a culpa não é do grande Estado, mas da grande empresa”.
Agora Lee quer se vingar do Estado. Aos seus 83 anos está distribuindo cartazes para o candidato do Tea Party ao Congresso por Luisiana.
Você menciona no seu livro a emoção como um ingrediente chave da política. Por que ela é importante como elemento de análise?
Creio que chegar a entender a narrativa profunda de cada um de nós é um passo preliminar para respeitar e entender, fundamentalmente, o que leva as pessoas a pensar o que pensam na política. Isso nos abre aos outros. Não é exatamente um fim em si mesmo, mas é preciso fazê-lo. Do contrário, o diálogo será inútil e defensivo. Temos que criar — e me refiro à nação no seu conjunto, esquerda e direita — uma zona de segurança na qual possamos nos comunicar sobre esses assuntos de forma aberta e produtiva. Isso não vai acontecer até que analisemos as bases emocionais de nossas convicções políticas.