Audiência destaca o entrecruzamento entre violência e criminalização de movimentos

De acordo com os participantes, as desocupações nas escolas e a invasão policial à ENFF evidenciam a fragilidade da democracia

Por Lizely Borges, da Página do MST

O excessivo uso de força repressora por agentes de segurança pública e a ação de criminalização de lideranças e movimentos populares tiveram destaque nos depoimentos realizados em audiência pública, nesta quarta-feira (09), em Brasília-DF.

A iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara de Deputados deu destaque aos sujeitos vitimados pelos fatos recentes das desocupações das escolas públicas no Distrito Federal e da invasão policial, na última sexta-feira (04), na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), espaço de formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), localizado em Guararema (SP).

Embora a ação repressora do Estado à reivindicação por direitos humanos por movimentos populares não seja contexto recente, para especialistas e lideranças a intensidade das violações recentes e não cumprimento de prerrogativas mínimas ao estado democrático de direitos, como livre direito à manifestação e à organização, demanda intensificação da denúncia pelo conjunto dos atores sociais.

“A justiça é historicamente construída como parcial, ela toma parte de um lado. Esses fatos que tem ocorrido, não apenas com o MST, mas também na cidade, reafirma que o Estado está a defender interesses não de todos, mas deste lado na qual a justiça atua”, declara a coordenadora nacional da ENFF, Rosana Cebalho Fernandes.

Desocupações nas escolas e invasão ao ENFF

Contrários à Medida Provisória (MP) 746/2016 para reestruturação do ensino médio e à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55/2016 que estabelece um congelamento dos gastos com políticas primárias, como saúde e educação, e pela defesa de uma educação pública plural e diversa, os estudantes do Distrito federal acompanharam o movimento nacional de resistência às medidas de austeridade do governo federal e se somaram às mais de mil instituições de ensino ocupadas, entre universidades e escolas públicas, sob controle dos estudantes.

As ações de desocupação pela Polícia Militar, com forte apoio de grupos reacionários, ocorreu mais intensamente na última semana, por determinação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Desde então, os estudantes tem denunciado os excessos da ação dos agentes do Sistema de Justiça na repressão ao movimento.  “Nos trataram como se fossemos criminosos, não somos. Somos estudantes. Estamos tentando defender a educação pública de qualidade. Não é justo que sejamos tratado assim, que sejamos reprimidos, temos o direito de nos manifestar”, relata estudante do Centro de Ensino Asa Branca (Cemab), em Taguatinga, Ravena Soares Carvalho.

Estudantes que participaram da ocupação do Cemab relatam terem sofrido violência física pela polícia civil e grupos conservadores oposicionistas às ocupações.

Durante a audiência Rosana relatou a ação da polícia civil na invasão à Escola. Ela conta que, sob justificativa do cumprimento de ordem judicial de prisão, oriunda do Juízo de Direito da Comarca Quedas do Iguaçu- PR, a polícia invadiu a sede da Escola sem apresentar mandado judicial físico, apenas uma imagem no celular, o que viola processos legais para tal ação. A isto se seguiram o emprego de violência, a ausência de mandado específico e o uso de armas de fogo.

A ação integra a operação nomeada “Castra”, empenhada nos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Em nota, o MST declarou que “o objetivo da operação é prender e criminalizar as lideranças dos Acampamentos Dom Tomás Balduíno e Herdeiros da Luta pela Terra, militantes assentados da região central do Paraná”. Oito pessoas foram presas na ação e duas foram feridas.

Criminalização e violência

Para a professora da Faculdade de Direito da UnB, Beatriz Vargas os poderes instituídos reposicionam os atores que reivindicam direitos – de defensores para ameaças ao estado. “Observamos um esforço tremendo em transformar integrantes de movimentos sociais em desviantes comuns, em indivíduos avessos à chamada ordem pública. [São tratados como] bagunceiros, perigosos que lançam mão de tipo de estratégia que descamba para violência”, problematiza.

“Podemos descrever o momento atual como processo de imputação de crimes à integrantes dos movimentos sociais Mas não apenas de crimes comuns, mas crimes contra a estrutura social”, diz. De acordo com a professora é comum a fragilidade de provas apresentadas em processos contra os movimentos populares. “É muito comum ao MST a debilidade das provas. Parte dessas provas são baseadas em testemunhas, baseadas por prepostos dos donos da terra”, relata.  De acordo com a assessoria jurídica do MST, o Movimento responde a processos judiciais nos estados do Rio Grande do Sul, Pernambuco, São Paulo, Goiás e Paraná.

Embora os movimentos estudantis de ocupação sejam recentes, as organizações representativas já sofrem ameaças por parte do governo federal. Na segunda-feira (07), o ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM-PE), anunciou que solicitará ao governo federal o acionamento judicial das entidades estudantis para que elas paguem a despesa provocada pelo adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).  Algumas das escolas onde seriam aplicadas a prova do Enem foram ocupadas pelos estudantes.

“Esta medida é uma clara tentativa de colocar estudante contra estudante (….) A liberdade de manifestação, organização e associação é inerente a está previsto na Constituição Federa, na Constituição Interamericana de Direitos Humanos. É uma história que nenhum governo tem direito de suprimir”, defende o deputado federal e presidente da CDHM, Padre Joao (PT-MG).

Ele ainda destaca que junto ao processo de criminalização de lideranças e movimentos apresenta-se o atentado à vida. O deputado relata que em trabalho pela Comissão de Direitos Humanos no estado do Mato Grosso do Sul, em razão de assassinato de liderança indígena, constatou-se a participação de agentes de segurança pública no crime.

Fragilidade democrática e continuidade de luta

Para o integrante do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e coordenador da organização Terra de Direitos, o conjunto de ações violentas empenhadas pelo Estado Brasileiro, bem como os retrocessos em políticas públicas essenciais com medidas adotadas pelo governo de Michel Temer (PMDB) evidenciam a fragilidade da democracia. “A democracia se revelou um processo bastante inicial, que não havia mecanismos aprofundados e enraizados a médio e longo prazo para efetivação de políticas públicas para realização dos direitos, em contraponto à elites”, diz. Frigo destaca que a não realização de mudanças estruturais, como a democratização da mídia, uma efetiva reforma política e tributária, deixou o pais vulnerável a interesses conservadores. “Essas mudanças não foram feitas, o que consolidaria a democracia. Na primeira oportunidade as forças reacionárias derrubaram a presidenta eleita e mostraram nenhum apreço ao voto”, pontua.

Nesse contexto, de acordo com ele, há apenas o caminho de resistência e de construção de diálogos. “Os movimentos sociais vão ter que se colocar no espaço de resistência para evitar maiores retrocessos e buscar manter relações com forças da sociedade e com alguns aliados nos espaços do Estado, como em algumas áreas do Sistema de Justiça”, conclui. No mesmo dia da invasão à ENFF, o CNDH encaminhou expediente às Secretarias de Segurança Pública dos estados envolvidos na “Operação Castra” solicitando informações.

“Enfrentar a criminalização dos movimentos sociais é algo indispensável para manutenção do estado democrático de direitos. Não se trata de retórica ou debate permeado por paixões a partidos políticos. Nós precisamos é mostrar que a desobediência civil é nosso direito. Não existe democracia sem desobediência”, finaliza Beatriz

Participação de movimentos e defensores de direitos humanos

Também participaram da audiência representantes da juventude, de coletivos de advogados populares, populações indígenas, o ex-ministro da Justiça e procurador da República Eugênio Aragão, a presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Ivana Farina e ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência Gilberto Carvalho.

*Editado por Iris Pacheco.

Imagem: A coordenadora da ENFF, Rosana Fernandes, relata em audiência pública a ação da Polícia. Foto: Mídia Ninja

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