VI encontro dos Kujã Kaingang: “nossa força ancestral nos encoraja a lutar”

Por Tiago Miotto (DF), no Cimi

Na zona sul de Porto Alegre, entre alguns dos bairros mais nobres da capital gaúcha, os Kaingang têm um importante ponto de resistência de sua cultura ancestral. É a Terra Indígena (TI) Morro do Osso, um território tradicional que, nas últimas décadas, tem sido alvo de fortes interesses imobiliários, interessados na construção de condomínios num dos poucos redutos de Mata Atlântica na região da bacia do rio Guaíba. Lá, entre os dias 23 e 26 de novembro, os Kaingang do Rio Grande do Sul realizaram o VI Encontro dos Kujã (pronuncia-se “cunhã”), xamãs e lideranças espirituais de seu povo.

“Aqui, nesses dias, nos fortalecemos mutuamente, batizados pelas mãos dos Kujã, aqueles que dão coesão a nossa organização sociopolítica Kaingang. São eles que orientam a nossa existência, a nossa resistência e iluminam nosso caminho. Eles ajudam a contar a nossa história, nesse território que habitamos a milhares de anos, mesmo antes da chegada daqueles que nos escravizaram, nos desprezaram, nos trataram como atrasados, exploraram e devastaram a terra e quase toda a natureza”, relatam os indígenas no documento final do encontro.

Durante os três dias da atividade, os Kaingang realizaram rituais, danças, cantos e rezas tradicionais, com a finalidade de fortalecer sua resistência e sua coesão frente aos ataques contra seus direitos e suas comunidades. O encontro contou também com a participação de lideranças Kaingang de Santa Catarina e de Guarani Mbya dos dois estados do extremo sul do Brasil.

Em agosto, o relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) sobre a situação dos povos indígenas na região Sul, publicado após três missões no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, evidenciou recorrentes situações de racismo, vulnerabilidade, segregação social e confinamento que são vivenciadas pelos indígenas dos povos Kaingang, Guarani Mbya e Laklãnõ (Xokleng) nos três estados da região.

“Lutaremos por nossa vida e nosso futuro. Lutaremos por aquilo que nos pertence. Atualmente sobrevivemos em terras diminutas que foram demarcadas, e, na beira de rodovias, sem o mínimo de condições de um bem viver”, seguem os Kaingang no documento, onde fazem menção também à ação repressiva realizada pela Polícia Federal, recentemente, na TI Passo Grande do Rio Forquilha.

“Parecia muito mais um espetáculo, para mostrar força e para intimidar a comunidade. Lá prenderam pessoas de forma ilegal, lá constrangeram as pessoas, espancaram e torturaram, inclusive crianças, mulheres e deficientes físicos. Que justiça é essa que os ‘civilizados’, os brancos, tanto prezam?”, questionam os indígenas.

“Os  Kaingang, em 9 de abril de 2004, retomaram o Parque Natural Morro do Osso, na cidade de Porto Alegre. Desde então lutam pela demarcação da terra e a cada ano realizam encontros e atividades visando o fortalecimento da organização do povo Kaingang na busca por seus direitos humanos, culturais e na preservação ambiental de seus territórios”, relata Roberto Liebgott, coordenador do regional Cimi Sul, que acompanhou o encontro no Morro do Osso.

Para o missionário, a valorização do modo de ser e da cultura do povo motiva os encontros, e a participação de crianças e adolescentes é sempre muito expressivas, e especialmente nos grupos de dança.

“Da mesma forma, há atividades de retomada da ‘medicina tradicional kaingang’ que se configura como um sistema médico xamânico, no qual doença e saúde compõe uma cosmologia de fatores físicos, sociais, ambientais e espirituais que interagem no processo saúde/doença e cura”, explica Liebgott.

No encontro, os Kujã realizaram rituais, conversaram e orientaram lideranças indígenas, batizaram crianças, estudaram a sociobiodiversidade dos campos e matas do Morro do Osso, localizando e identificando distintas espécies de véin katá (remédios-do-mato).

“Na visão de mundo Kaingang corpo e território, alimento e natureza estão intimamente relacionados. Esta relação é base de saúde e seu desequilíbrio é risco de doença; a restauração de sua ordem, a chave da cura. Ou seja, é necessário ter acesso ao território que guarda a ancestralidade do povo, sua religiosidade, a diversidade necessária para a saúde, alimentação e bem estar Kaingang”, completa o coordenador do Cimi Sul.

No documento final do encontro, os Kaingang cobram a demarcação de seus territórios tradicionais. Só no Rio Grande do Sul, são 15 terras sem providência da Funai ou aguardando a conclusão da primeira etapa do processo demarcatório, a identificação e delimitação das áreas – entre elas está a própria TI Morro do Osso, cujo relatório de identificação, seis anos do Grupo de Trabalho (GT) ter sido aberto, foi concluído e está em apreciação na Funai.

“Este encontro dos Kujã reforça a importância de nos unirmos e nos articularmos pelos nossos direitos, especialmente de nossas terras, afinal sem a demarcação de nossos espaços tradicionais de vida, não teremos educação indígena de qualidade, não teremos saúde de qualidade, não teremos sequer nossa cultura”, afirmam os Kaingang.

Leia, na íntegra, o documento do encontro:

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Documento do VI Encontro dos Kujã

Nos dias 23, 24, 25 e 26 de novembro de 2016, em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, na Terra Indígena Morro do Osso, mais uma vez nos reunimos com os líderes espirituais do nosso grande Povo Kaingang, os Kujã.

Como nos encontros anteriores, este foi de novo um momento de profunda espiritualidade, de ritualização, de danças, cantos que ecoam sobre a grande cidade e alcançam nossos espaços sagrados espalhados pelo Sul do país. Aqui, nesses dias, nos fortalecemos mutuamente, batizados pelas mãos dos Kujã, aqueles que dão coesão a nossa organização sociopolítica Kaingang. São eles que orientam a nossa existência, a nossa resistência e iluminam nosso caminho. Eles ajudam a contar a nossa história, nesse território que habitamos a milhares de anos, mesmo antes da chegada daqueles que nos escravizaram, nos desprezaram, nos trataram como atrasados, exploraram e devastaram a terra e quase toda a natureza.

Lamentavelmente continuamos a ver nosso povo sendo humilhado, desrespeitado, acusado e condenado por lutar para garantir o direito as nossas terras. Vivemos num país e num estado que se nega a admitir sua dívida histórica com os povos indígenas, um Estado que se alimenta das terras onde os antepassados foram plantados como guardiões. E essa força ancestral nos encoraja a lutar contra a ambição daqueles que não hesitam em encharcar as mãos como o nosso sangue.

Mas permanecemos, apesar deles, lutando por nossos direitos originários à terra mãe e aos espaços sagrados. Lutaremos por nossa vida e nosso futuro. Lutaremos por aquilo que nos pertence. Atualmente sobrevivemos em terras diminutas que foram demarcadas, e, na beira de rodovias, sem o mínimo de condições de um bem viver. Nós, os Kaingang, somos a 3ª maior população de povos originários do Brasil e, apesar disso, vivemos dias cinzentos e incertos, marginalizados e impedidos de vivermos na própria terra.

E exigimos respeito! Não aceitaremos a violência como resposta às nossas pautas e demandas. Não vão nos paralisar e nem nos amedrontar com a perseguição e nem mesmo com as prisões de nossas lideranças e de nossas famílias. Querem nos amedrontar. Prenderam nossos parentes em Passo Grande do Rio Forquilha porque lá estão lutando pela terra e contra os esquemas de exploração e arrendamentos. Sabemos que fazendeiros, políticos, delegados e até juízes e procuradores querem, na região norte do Rio Grande do Sul, manter o costume errado e ilegal do arrendamento de nossas terras. Eles fazem discursos contra os nossos direitos porque querem que nossas terras estejam a sua disposição para serem exploradas.

Exigimos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Ministério da Justiça o reconhecimento de nossos territórios, solicitamos sua identificação e delimitação, seguida da demarcação e homologação nos termos do artigo 231 da CFB/1988, do Decreto 1775/96 e da Portaria 14/96. Exigimos um basta na criminalização de lideranças e que os crimes contra indígenas e contra nossas terras sejam investigados com rigor e punidos, acabando assim com a onda de violências.

Exigimos respeito aos nossos costumes, nossa cultura, tradição e tratamento digno nas ações dentro de nossas terras. Denunciamos a desproporcionalidade de força utilizada em operações policiais nas terras indígenas. O mais recente caso aconteceu na Terra Indígena Passo Grande do Rio Forquilha que deixou a comunidade em estado de choque. Parecia muito mais um espetáculo, para mostrar força e para intimidar a comunidade. Lá prenderam pessoas de forma ilegal, lá constrangeram as pessoas, espancaram e torturaram, inclusive crianças, mulheres e deficientes físicos. Que justiça é essa que os “civilizados”, os brancos, tanto prezam? Um justiça pautada na violência e na intolerância?

Repudiamos também todas as propostas que estão nas pautas dos poderes dos brancos que pretendem retirar nossos direitos, tais como a PEC 215/2000, o Projeto de Lei 237/2012 e o Projeto de Lei do 31/2015. Manifestamos também nosso repúdio ao uso, pelo Poder Judiciário Brasileiro, do o marco temporal da Constituição Federal de 1988 como regra para as demarcações de terras. Essa interpretação quer aniquilar com as possibilidades de termos terra pra viver. Com essa estratégia, desejam negar o direito à terra de nossas comunidades e povos que delas foram expulsos. Como estaríamos na nossa terra em 1988 se dela nos arrancaram com violência e mataram nossos antepassados? Não vamos aceitar mais esse tipo manobra.

Por fim, este encontro dos Kujã reforça a importância de nos unirmos e nos articularmos pelos nossos direitos, especialmente de nossas terras, afinal sem a demarcação de nossos espaços tradicionais de vida, não teremos educação indígena de qualidade, não teremos saúde de qualidade, não teremos sequer nossa cultura.

Nós estamos finalizando este documento não como um lamento, mas como uma voz da justiça, falada, rezada e entoada por nossos líderes Kujã, caciques, parteiras, e de nossos professores, estudantes, agentes de saúde, técnicos em enfermagem, enfermeiros, nossos velhos, jovens, crianças, nossas famílias, das terras indígenas de Nonoai, Iraí, Vicente Dutra, Rio da Várzea, Inhacorá, Votouro, Kandóia, Xingu, Campo do Meio, Kondá, Apucaraninha, Morro dos Cavalos, Lami, Itapuã, Irapuá, São Leopoldo, Ligeiro, Kandóya, Lomba do Pinheiro. Guarita, Tabaí, Morro Santana e Morro do Osso.

Porto Alegre, 26 de novembro de 2016.
Comunidade Kaingang do Morro do Osso

Foto: Roberto Liebgott – regional Cimi Sul

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